Quando comprou a fazenda Bela Vista, o capitão Antônio Carlos trouxe a família e dois escravos numa longa viagem de carroça até a divisa das províncias de Minas Gerais e Espírito Santo. Não havia nenhuma cidade, apenas fazendas. O capitão recebera uma bela comissão como recompensa por levar um defunto rico do Rio de Janeiro para Catalão, Goiás, amarrado sobre o lombo de um burro. A viagem durou três meses, na companhia dos escravos. Os acompanhantes pensavam que a tal encomenda era um carregamento de carne seca. Certo dia, acudidos pela fome, seus companheiros quase devoraram a carga, não fosse o capitão adverti-los de que a “carne seca” não era das melhores.
Irmão mais velho do capitão Antônio Carlos, o engenheiro Manoel José acompanhava uma expedição enviada a Minas por Sua Majestade, Dom Pedro II, para fixar a bandeira nacional no ponto culminante do Império. O grupo de engenheiros ao qual pertencia baixou acampamento num sítio à beira de um rio, não muito longe da fazenda Bela Vista. Manoel José aproveitou a longa viagem para encontrar-se com o seu irmão, que há dez anos não via. Ao chegar à fazenda, abraçou Antônio Carlos. De espingardas em punho, como nos velhos tempos, saíram para caçar assim que anoiteceu. Acertaram duas capivaras num lugar em que o rio fazia uma curva. Batizaram-no de Volta Fria.
Degustando a caça à beira de um fogão-à-lenha, Manoel José tentou convencer Antônio Carlos a fazer um negócio: trocar a propriedade do engenheiro, em Barbacena, herança do pai, pelos dois valiosos escravos que, por inventário, couberam ao capitão. O irmão mais novo disse que pensaria. No dia seguinte, Manoel José agradeceu a hospitalidade do irmão e, após convencê-lo a fechar o negócio, retornou para o grupo dos colegas engenheiros. No acampamento, comentava-se que a espera pela caça, na noite anterior, havia sido muito feliz: pacas, capivaras, tatus e aves variadas. Almoçaram fartamente e iniciaram a subida da montanha mais alta do Brasil. Em seu cume, fincaram a bandeira imperial. O maciço de pedra nas altitudes elevadas foi batizado de Pico da Bandeira. A expedição retornou triunfante ao Rio de Janeiro com a missão cumprida. Manoel José tomou posse dos escravos que havia recebido em troca pela fazenda. Anos depois, o que aparentava ser um ótimo negócio, haja vista o valor dos escravos no mercado, transformou-se num grande prejuízo: a Abolição os libertara. Como consolação, guardou a certidão de propriedade dos escravos, que dizem existir até hoje.
O capitão Antônio Carlos havia morrido jovem. A fazenda Boa Vista ficou para a viúva e o seu filho único, Zeca. Três ou quatro décadas depois, Feliz Espera, rebatizada Espera Feliz, nascia às margens da ferrovia Leopoldina, construída pelos ingleses para ligar o Rio de Janeiro à zona cafeeira mineira. Espera Feliz já tinha algumas centenas de casas. Uma rua principal acompanhava a linha-férrea no sentido do curso do rio, que sumia atrás de um morro. Era um lugar com pouco conforto: alguns bares, hospedaria, armazéns, oficinas. A energia elétrica era suficiente para iluminar os postes da rua principal e alguns estabelecimentos. A luz era fraca e intermitente, fornecida por um gerador hidráulico nas proximidades. As comunicações eram por telégrafo ou correio, na estação de trem. A maioria da população vivia nas roças próximas e trabalhava na panha de café.
Antigamente o inverno era muito rigoroso. No tempo das águas, os esperafelicenses tinham de conviver com a lama; nos meses de seca, com a poeira que cobria o ar. As estradas rurais eram acanhadas, estreitas, pouco melhores que uma trilha. Só se podia viajar a cavalo, charrete ou carro de boi. Ir do vilarejo de São Sebastião da Barra até a cidade era uma aventura. Da fazenda Bela Vista dos tempos do capitão Antônio Carlos, restavam o terreirão, o moinho, as tulhas e o casarão. Zeca, seu filho, casou-se com Sinhazinha, uma prima. O jovem casal criou os filhos naquele recanto, em meio aos cafezais e ao sopé da cordilheira, hoje chamada de Serra do Caparaó. Quem fazia chover na fazenda era Sinhazinha: vanguardista, decidia sobre os negócios do marido, escolhia criteriosamente os cônjuges das filhas, opinava com veemência na escolha das noivas dos filhos varões, além de dirimir conflitos familiares. Sô Zeca compensava todo esse poder da esposa com uma habilidade singular para contar estórias e simpatia com os amigos e os netos, que logo nasceram.
A fazenda Bela Vista continuava um lugar alegre na Espera Feliz dos anos 1930. A única modernidade era um rádio de válvulas que ficava na cozinha, trazido da última viagem de Sô Zeca ao Rio de Janeiro, então capital federal. O rádio da fazenda funcionava com a fraca corrente elétrica de um gerador movido pelo moinho d´água. Os vizinhos, curiosos, frequentavam a casa à noite para ouvir notícias, conferir os resultados de partidas de futebol e ficar por dentro das novidades musicais. Era o único aparelho disponível na região. Enquanto Dona Sinhazinha retirava os pratos da mesa, os netos pequenos se achegavam ao fogão-à-lenha. Algumas frestas no telhado da fazenda deixavam entrar um pouco de frio. Sô Zeca pôs mais lenha no fogo, soprou as brasas e chamou os outros netos que já haviam jantado para que se sentassem próximos ao calor. Dona Sinhazinha oferecia-lhes leite quente.
Sô Zeca acende o cigarro de palha. Oferece um desses ao vizinho e compadre Jeremias, que sempre passava na fazenda ao final da tarde para a prosa. O compadre, embora simples e sem leitura, era um homem vivido e por demais honesto. Sô Zeca solta uma fumaça longa: “Vocês querem ouvir causos ou escutar um pouco de música no rádio?”, pergunta aos netos. Sô Zeca se levanta do banco e mostra a Eduardo, o caçula, como girar o botão do aparelho para sintonizar em uma estação. “Isso funciona mesmo, vovô? Acho que está com defeito”. O avô respondeu: “Tem de esperar esquentar as válvulas primeiro”. Do vidro da janela da cozinha podia-se ver, ao longe, a silhueta da Serra do Caparaó. A Lua nascia entre nuvens. Uma luz fraquinha iluminava o ambiente por meio de um rudimentar mecanismo que trazia a corrente elétrica do moinho para acender a pequena lâmpada da cozinha. Dela saía uma extensão para ligar o rádio.
A Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a mais importante do país, transmitia música e, a cada trinta minutos, boletins de notícias. Depois de “Chão de Estrelas”, de Silvio Caldas, e “Serra da Boa Esperança”, de Francisco Alves, entra no ar um boletim da noite. “E atenção, senhores ouvintes! As agências internacionais informaram que as tropas da Alemanha invadiram a Tchecoslováquia. Mais informações ao longo da programação”. Jeremias, num salto, exclama: “Meu Jesus do Céu!”. SôZeca, preocupado com a notícia que acabaram de ouvir, lança o olhar em direção a Jeremias: “Isso é muito grave, não acha compadre? Eu aposto cinco mil réis que deve estourar outra guerra lá na Europa. E deve racionar faltar muita coisa no Brasil: sal, trigo… A Leopoldina pode até parar sem carvão. O nosso café deve despencar de preço. E o pior de tudo, né compadre: nossos meninos podem até ser chamados para lutar na guerra se o Getúlio apoiar o Hitler”. Jeremias matuta por alguns instantes em silêncio e responde: “Mas tem um trem errada, cumpadre Zeca. Eu garanto pro senhor que esses sem vergonha da Alemanha não ia invadir essa tal de Salocáva se ela fosse registrada no cartório do sô Alixandre, lá em São Sebastião. Se fosse de papel passado mesmo, duvido que alguém se atrevesse a apossá dessa fazenda que deve ficá bem pra lá do córrego do Boiadeiro”.
Sô Zeca e os netos acham graça e logo mudam de assunto. Jeremias dá uma golada na aguardente trazida de seu alambique e conta alguns causos de suas caçadas na região da Volta Fria, que era um lugar encurralado entre a barranqueira e o rio, muito escuro e úmido, com árvores altas, onde o vento soprava frio. As crianças ouvem curiosas as descrições de tatus do tamanho de cavalos, capivaras gigantes, onças que falavam. Eduardo pergunta o que havia nesse lugar chamado Volta Fria. “É um mistério”, responde Jeremias. “Aliás, menino, por falar em onça, vou puxar meu carro. Tá é na hora da onça beber água. Boa noite, cumpadre. Noite, Dona Sinhazinha. Depois cêis me conta se prenderam aquêis alemão sem vergonha que entraram pra dentro da Salováca”. Montou na charrete, chicoteou seu cavalo Miguilim e partiu rasgando o breu rumo à sua casa.
Dona Sinhazinha manda as crianças lavarem os pés para irem dormir, pois já era tarde e deveriam acordar cedo para ajudar na ordenha no curral. Embora estivessem de férias, ajudavam nas tarefas da fazenda. Eduardo, o neto mais curioso e metido a escritor, pediu ao avô que contasse mais histórias antes de irem para a cama. Em acordo com Sinhazinha, que se recolhe para rezar em seus aposentos, o avô deixa a criançada ficar na cozinha até a brasa do fogão apagar. Eduardo indaga: “Queremos saber mais dessa Volta Fria, vovô. O senhor já viu alguma coisa assombrosa por ali?”. Os outros netos, atentos, ouvem a resposta do avô: “Uma noite, fui caçar com papai lá bem próximo da Volta Fria, na beira do rio. Não pegamos nada, nenhuma capivara gigante, nenhum tatu-cavalo, nem onça falante. Começou a chuviscar e resolvemos voltar cá pra fazenda. Eu fui na frente, carregando o lampião, conforme papai mandou. Ele ficou pra trás, recolhendo as provisões. Pediu pra esperar por ele na curva da Volta Fria. De longe, eu enxergava a luz da fazenda, bem fraquinha. O vento aumentava muito e o lampião apagou.”
Cheio de admiração pelo avô, Eduardo exclama: “O senhor era bem corajoso!” Zeca olha para as últimas fagulhas da brasa no fogão. Sopra para tentar, inutilmente, reacendê-la. O calor já se dissipa. Abre a janela e arremessa no terreiro o toco do último cigarro de palha que acabara de fumar. O vento invade a cozinha, arrepiando as crianças, já tomadas pelo assombro da história. “Fecha, vovô”, pediram. “E o bisavô?”, pergunta Eduardo. Zeca ajeitou-se na beira do fogão e continuou. “Olhei para todos os lados, mas não conseguia enxergar nada. Nem o vulto do papai. Eu estava sozinho. Senti desespero e medo, mas consegui gritar o nome dele. Só ouvia o barulho do vento. Depois de chamar umas três vezes pelo papai, me respondeu, lá da beira do rio. Senti um alívio. Ele me chamou pra ir lá correndo ver uma coisa. Cheguei lá e papai estava paralisado. Ele olhava para uma luz que se aproximava de nós, vinda do céu em nossa direção. O brilho dela aumentou e uma coisa passou zunindo por cima de nós. Parecia uma roda de carro de boi pegando fogo. E do nada, sumiu entre as árvores”.
“E o que o senhor acha que era, vovô?”, disse Eduardo. “Eu não gosto nem de falar. Ainda mais tarde da noite, que essas coisas impressionam e dão de aparecer no sonho da gente. Desde o acontecido, venho matutando sobre isso. Papai morreu sem saber. E eu não quero morrer sem descobrir o que era essa tal de roda de fogo”. O velho Zeca abriu o armário da cozinha, onde guardava as suas economias numa velha lata de biscoitos. “Eu faço uma proposta pra vocês: eu dobro a oferta que na época meu pai propôs pra qualquer morador dessas bandas que descobrisse o que era. Na época ninguém aceitou não. Por isso, eu dou dois mil réis pra quem for lá agora na Volta Fria e voltar com a resposta. Alguém se atreve? ” Zeca começou a contar o bolo de notas: “Três mil… cinco mil… dez mil… vinte mil… cinquenta mil… aqui, o dinheiro tá na mão. Ninguém vai?”.
O medo era tão grande que nem por cinquenta mil réis aceitaram a tão corajosa tarefa. Os netos não quiseram dormir no quarto de visitas. Foram direto para a cama de Dona Sinhazinha. Sô Zeca guardou o dinheiro na lata, desligou o rádio, trancou as portas e puxou a cordinha que apagava a lâmpada. O último lampejo de brasa se apagou no fogão. O mistério da Volta Fria nunca foi desvendado. Conta-se que a tal luz aparece lá de vez em quando.
SOBRE O AUTOR
Enrique Carlos Natalino, nascido em Espera Feliz em 1982, viveu na cidade até os quinze anos. Formou-se em Direito na Universidade de São Paulo (USP). Fez mestrado em Administração Pública na Escola de Governo da Fundação João Pinheiro, em Belo Horizonte. Foi Assessor Internacional do Governo do Estado de Minas Gerais e professor do Instituto de Ciências Econômicas e Gerenciais da PUC-Minas. Foi pesquisador-visitante do German Institute of Global and Area Studies (GIGA), na Alemanha. Atualmente, faz seu doutorado em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde se dedica à pesquisa sobre a política externa brasileira contemporânea. Publica artigos em jornais e é co-editor do blog Fora da Cadência (www.foradacadencia.com).