Venezuela: um país de interrogações

Dando continuidade à série de artigos sobre a América Latina contemporânea, hoje pretendo discutir um pouco sobre a trajetória recente da Venezuela, um país de paradoxos incríveis. Por um lado, os venezuelanos dispõem de uma das maioresreservas de petróleo do planeta, riqueza capaz de gerar receitas bilionárias para os cofres do Tesouro nacional. Por outro, […]

Publicado em 09/03/2012 - 00:32    |    Última atualização: 09/03/2012 - 00:32
 

Dando continuidade à série de artigos sobre a América Latina contemporânea, hoje pretendo discutir um pouco sobre a trajetória recente da Venezuela, um país de paradoxos incríveis. Por um lado, os venezuelanos dispõem de uma das maioresreservas de petróleo do planeta, riqueza capaz de gerar receitas bilionárias para os cofres do Tesouro nacional. Por outro, essa nação de trinta milhões de habitantes vizinha do Brasil apresenta um quadro de desorganização econômica e institucional sem paralelo na América do Sul, responsável pela multiplicação da corrupção, do autoritarismo e da miséria.

Num estudo recente sobre os principais elementos da formação política venezuelana, o diplomata Rômulo Figueira Neves selecionou traços que considera essenciais para se entender o país: o militarismo, o bolivarianismo, a radicalização política e a baixa produtividade. O militarismo se assenta na ideia de que o soldado encarna as melhores virtudes da nação, o que explicaria a participação direta das forças armadas na política, desde a independência até 1958, tese que não arrefeceu completamente nas décadas subsequentes. Num outro plano, a adoração quase religiosa da figura de Simon Bolívar é indissociável da formação da identidade nacional venezuelana. O Libertador seria a encarnação perfeita do caudilho forte, bravo e virtuoso que soube forjar a nação e lutar por uma América do Sul unida.

Em terceiro lugar, a radicalização política se assenta na formação tortuosa do Estado e da sociedade, resultando em diversos problemas de integração e desigualdade entre classes e regiões. Finalmente, a baixa produtividade estaria relacionada com a busca de soluções econômicas, políticas e administrativas que primam pela reprodução contínua de uma cultura de privilégios, pelos comportamentos rentistas e pelo adiamento de ajustes e reformas.

 

  1. 1.      Militarismo
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Da colonização espanhola à independência, e daí até meados do século XX, a Venezuela foi governada desde os quartéis. Após as guerras revolucionárias, que culminaram na emancipação da Espanha, o poder dos grupos de caudilhos locais se sobrepôs ao quase inexistente aparato estatal, dominando todos os aspectos da vida nacional durante a maior parte do século XIX. Com o desaparecimento dos últimos heróis da independência e os esforços de centralização político-administrativa, os militares profissionais assumiram o controle direto do país.

O pretorianismo das forças armadas representou um avanço no sentido do enfraquecimento dos potentados locais e da institucionalização de um Estado centralizado. Nesse sentido, saíram de cena os militares de primeira geração (José AntonioPáez, Guzmán Blanco e Joaquín Crespo) e entraram no jogo os militares-políticos com formação profissional (Cipriano Castro, Juan Vicente Gómez, López Contreras, Medina Angarita, Carlos Delgado Chalbaud e Pérez Jiménez).

Após a Segunda Guerra Mundial, com a modernização da economia e da sociedade, a ascensão de uma classe média urbana e o afastamento de parte dos militares do pretorianismo, iniciou-se o primeiro experimento democrático. Mas a forte reação à participação dos civis na política e ao crescimento do movimento de massas conduziu a Venezuela a regredir a um regime militar, que durou de 1948 a 1958. A partir da derrubada da ditadura de Pérez Jiménez e a institucionalização de um sistema partidário competitivo, os militares afiançaram o regime democrático e retornaram aos quartéis, mantendo participação apenas na burocracia estatal.

Entre as décadas de 1960 e 1990, as idéias pretorianas encontraram espaço apenas no baixo escalão, constantemente aliciados por movimentos guerrilheiros marxistas. Com o colapso econômico e social dos anos 1990 e a implosão do sistema de partidos, os militares voltaram à cena, com tentativas de golpes e a eleição do coronel Hugo Chávez à presidência da República, em 1998.

  1. 2.      Culto a Simón Bolívar

O militarismo e o bolivarianismo estão profundamente inter-relacionados. O culto a Simón Bolívar começou com a superestimação das virtudes dessa personagem histórica, convertendo-a em mito. Diferentes reinterpretações de sua biografia o transformaram num ser humano superior, fonte de exemplos morais em todas as searas da vida humana, especialmente na arte de governar. Segundo o historiador Germán Carrera Damas, Simon Bolívar não é apenas o principal pilar sobre o qual se assenta o nacionalismo venezuelano, mas também um poderoso instrumento utilizado pelas forças dominantes para arregimentar apoio a diferentes tipos de projetos políticos.

Nessa linha, sucessivos regimes autoritários recorreram a Bolívar para tentar superar as crises pós-independência, prometer um retorno às glórias passadas, desviar a atenção dos problemas internos e justificar a supressão de liberdades. Autocratas como Guzmán Blanco, Vicente Gómez e Pérez Jiménez, buscando a própria mitificação, se identificaram tanto com Bolívar que diziam ser a sua reencarnação. Por outro lado, governos democráticos como os de Rómulo Betancourt, Carlos Andrés Pérez e Rafael Caldera também não descartaram o nacionalismo bolivariano para respaldar suas administrações junto às classes populares. Diferentemente dos Estados Unidos da América, em que os FoundingFathers não foram mais idolatrados do que as regras instituídas pelo constitucionalismo democrático do século XVIII, o culto a Bolívar na Venezuela reforçou o personalismo e o militarismo.

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  1. 3.      Radicalização dos Discursos Políticos

O terceiro elemento determinante da formação da Venezuela, na visão de Neves, é a radicalização dos discursos políticos. Considerando que as instituições do país não foram reforçadas ao longo do século XIX, o ambiente político se tornou conflituoso e instável, pouco permeável à observância de regras formais e à construção de consensos duradouros. O liberalismo norteou a elaboração de todas as Constituições desde 1830, mas foi suplantado por recorrentes casuísmos e pela tradição personalista das elites.  O histórico de violência na resolução de controvérsias e o acúmulo de distorções econômicas com a exploração do petróleo agravaram essas clivagens. Das primeiras décadas de existência independente até meados do século XX, nenhum documento constitucional conseguiu mitigar as fortes divisões sociais, étnicas e regionais, levando à extrema polarização entre os atores políticos (NEVES, 120-122).

A exploração da maior riqueza do país criou poucos empregos, distribuiu privilégios, gerou desperdícios, aprofundou as desigualdades sociais e acelerou o êxodo rural. Com o declínio da agricultura, o desenvolvimento industrial altamente concentrado e a injusta distribuição de renda, os venezuelanos tiveram um dos processos de modernização mais segmentados do mundo.

Instituído a partir de 1958, com o Pacto de PuntoFijo, o regime democrático cimentou a harmonia social e a estabilidade política, mas ampliou a quantidade de interessados na manutenção do modelo rentista e deixou de fora parte da população. Os partidos políticos se apoderaram do Estado e de suas rendas, criando clientelas eleitorais cativas entre os trabalhadores do setor petroleiro, os empresários e os burocratas. Assim, o ambiente político foi congelado, inviabilizando ajustes estruturais futuros.

O populismo petroleiro entrou em crise nos anos 1980, quando os preços da commodity declinaram após os dois booms (1973-74 e 1979-82), arrastando a Venezuela para a mais profunda crise econômica e social de sua história. Além de minar a confiança da população no sistema político, a crise inviabilizou a superação das clivagens sociais e trouxe enorme intranquilidade aos quartéis. Se a democracia pactuada escamoteou as disputas naturais de interesses por detrás de um consenso “artificial” cimentado pelo petróleo, isso não evitou que houvesse o colapso do regime.

 

  1. 4.      Baixa produtividade e cultura de privilégios
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Por fim, o quarto elemento da formação política venezuelana se relaciona com o papel do petróleo na estruturação do sistema econômico do país. De acordo com essa interpretação, a lógica da exploração petroleira desmobilizou as classes produtivas autônomas e expandiu a jurisdição estatal sobre a economia, gerando desigualdades estruturais permanentes. Como o petróleo trouxe poucas externalidades positivas para a capacitação da mão-de-obra e o acúmulo de tecnologia, os resultados de décadas de crescimento econômico se concentraram apenas nas principais áreas urbanas, em torno das jazidas e dos terminais de embarque. Além disso, com o afluxo de receitas do petróleo nos cofres públicos, a agricultura e a indústria foram subsidiadas, tornando a economia não-petroleira pouco eficiente e competitiva, com altos custos de produção e baixo valor agregado.

A excessiva concentração de riquezas nas mãos de um Estado altamente politizado obliterou o aperfeiçoamento das instituições e dos mecanismos de mercado. Ao invés de fomentar a confiança, a cooperação e a concorrência, o modelo rentista converteu o Estado numa espécie de “feiticeiro magnânimo”, capaz de transformar alquimicamente riqueza líquida em modernidade. Nessa atmosfera de possibilidades infinitas, os atores políticos podiam ser seduzidos e cooptados; os bens materiais, comprados ou produzidos a qualquer custo; as reformas econômicas e administrativas, substituídas pela postergação de ajustes e decisões impopulares. Enquanto o fluxo de petróleo para os mercados no exterior supriram o erário com receitas abundantes, o modelo rentista produziu alguns resultados concretos, mesmo ocultando distorções e desperdícios.

Na visão de Neves, essa baixa produtividade econômica seria consequência da Maldição dos Recursos Naturais. A dependência crônica do setor mineral freou o desenvolvimento de atividades econômicas alternativas e gerou um setor público dependente de uma só fonte de arrecadação. Dessa forma, o Estado venezuelano não extraía o grosso dos seus recursos da carga tributária, mas de sobretaxas impostas à indústria petrolífera ou de receitas transferidas das empresas estatais para o tesouro nacional. Ao invés de incentivar a eficiência e a transparência no trato com o dinheiro público, esse esquema conduziu à busca desenfreada pela apropriação de recursos por parte de todos os grupos políticos. Os cidadãos, por sua vez, se acostumaram a receber benesses sem contribuir para financiá-las, criando uma cultura política de privilégios.

A falta de uma burocracia autônoma e profissionalizada também freou o avanço da capacidade estatal e comprometeu a coerência das políticas públicas, estreitando, por conseguinte, as possibilidades de desenvolvimento de longo prazo. Ao contrário da tradição anglo-saxônica, em que a instituição de tributos foi seguida do reforço da qualidade da representação política, na Venezuela houve uma inversão dessa lógica, com representação e quase nenhuma taxação.

 

Em suma, as possibilidades interpretativas proporcionadas pela combinação desses quatro elementos, vistos sob a ótica da teoria do institucionalismo histórico, ajudam a explicar por que um dos países mais ricos do planeta em recursos naturais não conseguiu se estabilizar politicamente, desenvolver uma economia mais sustentável e resolver os problemas sociais acumulados. Nesse sentido, as escolhas políticas do passado, permeadas pelas instituições existentes, ajudam a entender os problemas do presente e as opções do futuro. Assim, nos artigos seguintes, abordarei o tema da centralidade do petróleo na vida econômica, política e social da Venezuela, de modo a iluminar algumas das escolhas que nós, brasileiros, teremos que fazer em breve, quando os promissores campos de petróleo da plataforma pré-sal começarem a jorrar.

 

 

 

Enrique Carlos Natalino – Bacharel em Direito e mestre em Administração Pública, é professor universitário e assessor de Internacional na Governadoria do Estado.


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