Um feudo petrolífero: passado, presente e futuro

  Discutimos, na semana passada, alguns pontos centrais para a compreensãodos problemas econômicos, sociais e políticos da Venezuela moderna. Hoje, pretendo mostrar como os pontos levantados no último artigo contribuíram para a construção da trajetória do “feudo” petrolífero venezuelano e para a ascensão ao poder do chavismo.    1.      De Bolívar a Chávez  A propósito […]

Publicado em 17/03/2012 - 12:58    |    Última atualização: 17/03/2012 - 12:58
 

 

Discutimos, na semana passada, alguns pontos centrais para a compreensãodos problemas econômicos, sociais e políticos da Venezuela moderna. Hoje, pretendo mostrar como os pontos levantados no último artigo contribuíram para a construção da trajetória do “feudo” petrolífero venezuelano e para a ascensão ao poder do chavismo.

 

 1.      De Bolívar a Chávez

 A propósito do projeto bolivariano do Coronel Hugo Chávez, uma combinação de ativismo caudilhesco, militarismo, populismo, personalismo e ações espetaculosas, alimentadas pelos altos preços do barril de petróleo na última década, é irresistível não invocar a trajetória de Simon Bolívar (1783-1930), herói da independência não apenas da Venezuela, mas também da Colômbia, Peru, Equador e Bolívia.

 Antes de morrer, deprimido e decepcionado no exílio, o Libertadorprofetizou, no leito derradeiro, que a Venezuela seria um eterno quartel. Firmado no imaginário popular e na identidade nacional, o mito do salvacionismo militar fez com que o quartel venezuelano fosse sucessivamente governado por generais e coronéis de famílias com forte tradição rural (Monaga, Blanco, Crespo, Castro, Vicente Gómez, López Contreras, Medina Angarita e Pérez Jiménez).

 O general Gómez, por exemplo, inaugurou um sistema de governo em que quase todos os ministros, congressistas e funcionários públicos eram pertencentes à família do Chefe de Estado, mais tarde importado pelo rei Abdul Aziz ibnSaud, fundador da Arábia Saudita. Morreu em 1935, depois de governar durante 27 anos, deixando uma herança de inchaço da máquina estatal, corrupção e clientelismo arraigados.

 Derrubado o condomínio dos generais, em 1958, a Venezuela conheceu certo fôlego democrático, subordinando os quartéis à autoridade civil e com uma democracia representativa, partidos políticos competitivos e eleições periódicas. Viveu uma época de modernização e prosperidade, com um capitalismo misto que encheu os cofres do Estado com as rendas de exportação do petróleo.

 

Ao elevar os preços do seu principal produto de exportação, a crise mundial do petróleo de 1973-74 inundou rapidamente o país de petrodólares, o que trouxe implicações importantes. Ao não utilizar as receitas fiscais extraordinárias para o fortalecimento e diversificação da economia, a Venezuela viveu um rápido boom de consumo, importações, projetos megalômanos e desperdícios, arrastando-se em direção ao endividamento e ao colapso financeiro nos anos 1980, quando os preços do petróleo voltaram a cair. A capital, Caracas tornou-se uma das cidades mais caras do mundo e um dos lugares de mais alto consumo per capita de uísque escocês.

 Na década seguinte o sistema petroleiro chegou aos seus limites, revelando a insustentabilidade de um Estado inchado e de uma burocracia ineficiente. Terry S. Karl, autora de “The ParadoxofPlenty: Oil Booms andPetro-State”, mostra que o fator chave para a compreensão da deterioração econômica, política e social da Venezuela foi a Maldição dos Recursos Naturais, um processo mediante o qual o crescimento exponencial do setor primário deprime os demais, levando ao estancamento geral da economia, à explosão da dívida externa, à inflação e ao desemprego.

 Assumindo esta herança perversa, o governo de Carlos Andrés Pérez (1989-1993) não logrou êxito em seu plano reformista e, depois de um conturbado governo, ameaçado até por agitações dos quartéis, foi destituído pelo Congresso. Rafael Caldera (1994-1999), seu sucessor, tentou sem chances eliminar as causas da crise, o que redundou num fracasso que comprometeu a credibilidade das instituições, dos partidos e dos políticos.

 O alto índice de abstenção nas eleições presidenciais de 1998 (36,6%) – aquelas que ungiram Chávez ao poder pela via eleitoral, com 56% dos votos – abriu grande espaço para sua dominação personalista. Com efeito, Chávez convocou Assembleia Nacional Constituinte no ano seguinte, na qual se abstiveram impressionantes 53,8% dos eleitores.

 

2.     O caudilho bolivariano no poder

 Os chavistas aprovaram um documento sob medida a suas ambições de poder, com alto grau de presidencialismo e desmonte da autonomia das instâncias públicas, fundamentais nas pólis modernas, como a magistratura, os governos locais, as universidades e os meios de comunicação. Todos neutralizados e expropriados em sua capacidade técnica, convertendo o Estado venezuelano em uma monolítica estrutura de mando centralizado vertical.

 No referendum de aprovação da Constituição Bolivariana, 55,5% dos eleitores se abstiveram. Confortável no poder, mas nem tanto, Chávez conduziu a Venezuela a uma longa viagem rumo ao passado. Sua política econômica aprofundou o modelo de dependência petrolífera, com traços anticapitalistas nas políticas distributivistas de suas “misionessociales”, paralelas aos sistemas público de saúde e educação, levando-os ao sucateamento.

 A Venezuela atravessou nova espiral de conflitos provocados pelo afastamento de setores da classe média, de empresários e trabalhadores dos rumos tomados pelo governo. Trocas de acusações entre Chávez e a Igreja, a estatal PDVSA, os meios de comunicação e as oposições levaram a situação política a inflamar-se perigosamente em abril de 2002, com um golpe militar fracassado, o “Carmonazo”, que chegou a apear o presidente do poder por 48 horas. Entre 2002 e 2003, greve de fome dos trabalhadores da PDVSA paralisou a extração de petróleo por semanas. Chávez respondeu demitindo sumariamente 18.000 gerentes e técnicos da estatal, aproveitando para continuar a purgação de focos de oposição em toda a administração pública, provocando enorme diáspora de cérebros.

 O Referendo Revocatório de 2004 (abstenção de 33,4%) foi a oportunidade perdida para os venezuelanos abreviarem democraticamente o mandato de Chávez. A eleição de uma maioria chavista de 100% na Assembléia Nacional, resultado do boicote dos partidos de oposição às eleições congressuais, mostra a farsa de um Legislativo de fancaria. Sua reeleição em 2006 para um novo mandato presidencial de seis anos lança o país na incerteza quanto ao futuro. As “LeisAutorizantes” de 2007 e 2010, em que o Congresso abre mão de seus poderes, constituiu um verdadeiro atestado de indenidade.

 Malgrado os imensos poderes marciais, apoios políticos e recursos concentrados em suas mãos, o regime de Hugo Chávez não conseguiu reestruturar, diversificar e desvencilhar a economia venezuelana da chamada “Maldição dos Recursos Naturais”, deixando-se levar pela tentação de aumentar os gastos públicos com objetivos populistas.

 E, contrariando as lições do passado, a Venezuela de Chávez vinculou ainda mais a economia ao dirigismo estatal, ao protecionismo, à distribuição clientelística de recursos fiscais e ao aprofundamento da dependência em relação a sua principal riqueza, com resultados desastrosos: redução dos investimentos públicos e privados, deterioração da infraestrutura, queda na produtividade dos principais setores, desindustrialização, congelamento de preços, nacionalizações, encampação de empresas privadas, desabastecimento, aumento da inflação e crescimento oscilante.

 

3.     Petróleo e autoritarismo

 As escolhas das políticas econômicas produzem implicações no mundo político, ajudando a explicar por que a Venezuela vem vivenciando constantes períodos de instabilidade e crises. A era Chávez (1998-2010) também tem sido marcada por retrocessos político-institucionais notáveis, com a militarização do Estado e da sociedade, o enfraquecimento do Legislativo e do Judiciário, a centralização do poder nas mãos do Executivo, a perda de autonomia dos órgãos de controle, o solapamento da Federação, o reforço clientelístico do aparelho do Estado, o esmagamento das oposições, a criação de milícias paraestatais à sombra do partido oficial, a censura aos meios de comunicação e outras restrições aos direitos e liberdades fundamentais.

 O cenário da gestão pública não é menos desolador, com o enfraquecimento da capacidade estatal e a politização da administração, favorecendo o clientelismo, a corrupção e a ineficiência. Enquanto as Forças Armadas recebem fartos recursos para sua ampliação e reaparelhamento, por ser o principal sustentáculo do governo Chávez, áreas como energia, transportes e segurança vêm sendo negligenciadas pelo setor público, resultando em crescentes perdas para a competitividade da economia venezuelana e para o bem-estar dos cidadãos. A deterioração das forças de segurança pela falta de investimentos é apontada como uma das causas do aumento da criminalidade nas ruas das principais cidades da Venezuela.

 É possível comparar os amplos poderes concentrados na presidência da Venezuela com a força do Poder Executivo central da Hungria nas reformas do pós-socialismo. Ao invés de produzir racionalização e coerência, a discricionariedade estatal sob a égide do governo Hugo Chávez resulta em inconstância econômica, instabilidade política e insegurança jurídica, erodindo as bases do desenvolvimento do país.

 O gasto social venezuelano aumentou consideravelmente na década de 2000, graças às receitas fiscais extraordinárias oriundas do aumento da cotação dos preços do petróleo. Isso permitiu o direcionamento de recursos de investimentos da empresa estatal PDVSA para o combate à pobreza em bairros pobres, as chamadas misionessociales – inspiradas no modelo cubano. Mas essas despesas são financeiramente insustentáveis no longo prazo e se atrelam diretamente aos objetivos clientelísticos, personalistas e autoritários do governo Chávez, favorecendo regiões onde se concentram seus aliados políticos.

 A política externa venezuelana, por sua vez, se vincula à diplomacia personalista do presidente Chávez e de sua Revolução Bolivariana, cuja principal bandeira é a integração política e econômica dos povos latino-americanos à revelia do sistema capitalista e dos Estados Unidos. Para regozijo do regime chavista, os altos preços do petróleo entre 2003 e 2008 permitiram ao governo não apenas o disfarce de uma estabilidade monetária, cambial e da inflação, mas também distribuir vastos recursos do petróleo para projetos de cooperação com países como Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, o cinturão ideológico da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA).

 O objetivo internacional de Chávez é lograr alcançar a hegemonia sul-americana e reviver uma visão econômica baseada no estatismo, noprotecionismo e na autarquia, segundo uma cosmovisão política antiamericana, encorajada por uma presença terceiro-mundista em foros internacionais aliada a regimes autoritários. Tal atitude vem afastando novos investimentos diretos e comprometido a modernização econômica do país, privando as empresas da indispensável concorrência e absorção de novas tecnologias.

 

4.     Os dilemas futuros

 Em suma, é possível esboçar uma análise da evolução das instituições venezuelanas (políticas governamentais, estrutura do Estado, grupos sociais, ideologia e inserção internacional) para explicar o declínio econômico do país, malgrado a sua imensa riqueza petrolífera. O caso da Venezuela é bastante revelador de como a instabilidade prejudica o desenvolvimento econômico, comprometendo a confiança dos investidores nacionais e estrangeiros nas regras do jogo e dos cidadãos em relação ao governo.

 Assim, a Venezuela se apresenta como um país polarizado e fraturado, em que o Estado está aparelhado em função de uma causa revolucionária e de uma verdade totalitária. Chávez utiliza habilmente o carisma, a propaganda, a retórica inflamada, a manipulação das instituições, das leis e dos programas governamentais para fortalecer sua popularidade perante as populações mais pobre e as forças armadas, sua base de apoio político.

 A excessiva centralização de decisões nas mãos do Executivo central, a pregação ideológica revolucionária, o desmonte dos espaços de autonomia estatal, a repressão política e a completa discricionariedade presidencial no manejo das receitas fiscais têm provocado um déficit de legitimação do Estado perante o conjunto da sociedade e aprofundado as dificuldades do sistema político venezuelano em dar respostas às sucessivas crises políticas e econômicas.

Na minha visão, na atual conjuntura, o governo venezuelano atual condena seu povo ao atraso e à ruína. Aumenta a escala de insegurança jurídica, política e social, dissolvendo o prestígio de uma nação que era exemplo de democracia, tão segura de sua estabilidade que rompeu relações com o Brasil em 1964, em represália ao golpe militar. Exposta à galhofa nas Nações Unidas, a Venezuela tem estado à mercê de um ser iluminado, e seus asseclas, que se creem investidos do direito de ditar os destinos nacionais, dando-nos a confirmação derradeira da visão do Libertador, Simon Bolívar.

 Torçamos para que, nas próximas eleições, previstas para o final de 2012, os venezuelanos consigam se livrar desse entrave ao seu desenvolvimento e enfrentar a herança maldita que ele deixou.

 

ENRIQUE CARLOS NATALINO. Esperafelicense. Graduado em Direito (USP) e Mestre em Administração Pública (Fundação João Pinheiro). Professor universitário (PUC Minas) e Assessor de Relações Internacionais da Governadoria do Estado de Minas Gerais.

 

 


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