(Imagem: Salvador Dali)
Hoje ele se olha no espelhoe percebe o homem que há muito já não via. Olha, vê, enxerga. Só assim pode sentir do homem que encara o próprio reflexo a imagem que vai muito aquém desse espelho que olha.
Tem rugas. Pelos que escorrem grandes das narinas e ouvidos. Ao alto, a testa que um dia foi estreita, alarga-se em fiapos dos poucos cabelos que lhe restam.
Mas frente ao espelho, retrocede ao reflexo que o tempo deixou pra trás. Muito antes do agora, em outras lembranças que talvez não passam de devaneios, procura o homem que um dia foi. Vê, mas não acredita. O homem da sua condição atual é curvo, demasiado frágil. Pálido. Esmiuçado desde datas antigas.
Enquanto vê seus lábios secos e fendosos no espelho, recorda-se dos sabores que já degustaram. Frutas, doces, bocas. Vê seu nariz de pele flácida e porosa. Recorda-se dos cheiros que já sentiu. Jantares, perfumes, lençois. Vê suas orelhas, alongadas pela força do tempo. Recorda-se dos timbres que já ouviu. Canções, gracejos, relógios de bolso. Vê suas mãos trêmulas. Recorda-se das texturas que já tocou. Veludos, almofadas, taças.
E por final, vê seus olhos, estáticos, fechados. Recorda-se que já não lhe servem mais para nada. Assim como também não lhe servem mais a boca, o nariz, os ouvidos e as mãos…
Seus sentidos já não sentem absolutamente nada, abaixo de sete palmos.
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Farley Rocha, fã do Radiohead e do Seu Madruga, nasceu em 1982 e mora na cidade de Espera Feliz, interior de Minas. Professor por formação e poeta por obsessão, mantém o blog palavraleste.blogspot.com, espaço aonde publica seus textos e outras insanidades literárias.