Seu Domingos era o tipo de sujeito “ora pois!” (com som de “x”). Um português de sangue, de terra e de pensamento. De si, pouco ou nada dizia, mas falava muito sobre as coisas, sobre o mundo.
Era já velhote. Sabia da vida e por isso falava, debaixo do seu sempre boné de pano axadrezado. E o casaco, pra frio da Europa, mesmo quando o sol cascava ele usava. Cumprimentando ia por onde a bengala o levava.
Já sua mulher era brasileira. Do mesmo povo o qual Seu Domingos, após anos de samba e manga madura, de certa forma nunca conseguiu traduzir completamente para sua cultura de mesmo idioma – é que o azul dos seus olhos eram mais lusos que os nossos.
Em sua locomoção curta nos sapatos sem cadarço, ia e vinha tartarugando pelas ruas. Mas quando parava com um era só “ora pois!”, falava e falava. Para ele sempre havia um par de ouvidos. Tagarelava e não caducava.
Um dia soube que Seu Domingos era poeta. Já desde Portugal da época em que se aprendia Camões na escola. Galanteou por lá seus versos e por cá veio dando-lhes voz junto ao eco da serra. Originais que mantiveram até o sotaque.
Recitava sonetos a pedido, no meio da calçada mesmo, e dos seus óculos de aro grosso costumava lançar olhares mudos sobre as colinas, o céu e os meninos que brincavam na rua. Depois, fraseava pensamentos que lhe ocorriam, tipo:
“– Olhas, filho, o que muitas vezes sentes de belo não está nem sempre além-mar. Basta tu olhares por cá que verás o manifesto do amor, dos sonhos e de tudo o mais. Teu redor é preenchido por uma parte da vida a qual tu não vês, mas que faz te sentires bem como se visitasse a alegria. Isto, filho, é poesia puríssima.”
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Seu Domingos, com sua bengala e seus versos, era muito mais que um simples “ora pois…”
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Farley Rocha, fã do Radiohead e do Seu Madruga, nasceu em 1982 e mora na cidade de Espera Feliz, interior de Minas. Professor por formação e poeta por obsessão, mantém o blog palavraleste.blogspot.com, espaço aonde publica seus textos e outras insanidades literárias.