Foto: Douglas do Carmo Pereira
Os olhos do sol vão se fechando sobre a cidade e depois do morro da Major Pereira, por entre os arbustos secos no alto da colina, as últimas nuvens do céu ocultam os últimos raios do dia. O halo da tarde desliza na brisa pelas ruas, bares, telhados e pracinhas. Então é noite e a penumbra cortina os quatro cantos de Espera Feliz.
Contudo, há um lugar na cidade (ou sobre ela) que ainda guarda os vestígios desse dia quente de verão. Com o fiapo de céu claro ainda refletido por seus rochedos salientes, uma indiscreta montanha assiste de cima ao sol oblíquo no horizonte, a distâncias que só ela pode ver neste momento. Até que o último ponto luminoso se apaga em seus espelhos cretáceos e a cidade acende seus postes e varandas.
Mas mesmo antes de existirem os postes e a cidade, bem antes, quando Espera Feliz não passava de um vale verdejante enxarcado pelo rio São João, a Torre (apelido deste nosso monumental monte de estimação) já estava lá assistindo às tardes crepusculares ainda virgens aos nossos olhos. Também nos dias de outros tempos, sobre camadas espessas de nevoeiro antigo de outros invernos, a montanha já convivia com tempestades e trovões, presenciando terremotos que deram forma ao mundo e observando o mesmo sol que sempre morreu no oeste.
Hoje não se sabe se é ela que pertence à cidade ou se é a cidade que a pertence – nós chegamos depois e fomos ficando, habitando as entranhas de suas encostas, apensos a sua sombra.
Porém, o que ninguém deve imaginar é que por trás do seu profundo silêncio de montanha velha, ela nos vigia. Observa nossos passos que, daqui de baixo, são como de formigas. E só dentro dessa noite podemos nos sentir um pouco maiores do que somos – já que a escuridão sem luar ou estrelas apagou por completo a serra – e assim fingirmos ser indiferentes à sua ausência.
Mas pela manhã, será ela a primeira a se apresentar ao sol. E, pela sua parte oculta, será generosa e nos trará de presente o dia, que romper-se-á do seu topo e banhará num aluvião de luz e calor toda a cidade, no meio de todas as pessoas. E ao abrirmos as janelas, veremos a montanha sempre lá, grandiosa, sentada sob o céu. Nos vigiando. Olhando por todos nós até quando por aqui estivermos.
* * *
Farley Rocha, fã do Radiohead e do Seu Madruga, nasceu em 1982 e mora na cidade de Espera Feliz, interior de Minas. Professor por formação e poeta por obsessão, mantém o blog palavraleste.blogspot.com, espaço aonde publica seus textos e outras insanidades literárias.