Pelas esquinas e entre os carros nos acostamentos a rotina é vista como de costume, da Major Pereira à Pio XII, trafegando pelo centro, saindo das boutiques, entrando nas mercearias. A cidade, sob ares quase-de-inverno, movimenta-se interioranamentesem que nada disperse a atenção.
Exceto pelo bizarro fenômeno que ocorre no céu desta tarde fria.
Da porta da padaria, a criança no colo da mãe é quem vê primeiro: “Olha!”. Perplexa, a mulher desperta outros olhares que olham para o alto. E não demora muito para que a rua inteira se pareça uma galeria de estátuas humanas, boquiabertas com o testemunho.
Para onde olham, lá para os lados da Serra do Bicudo,camadas gigantes de nuvemse movem roçandoa extremidade dos picos, como se estivessem no preparo de desabar tempestades catastróficas sobre Espera Feliz, acompanhadas de ribombantes furacões a engolirem todas as casas, quintais e placas de trânsito. Mas cá de baixo, de onde o fenômeno é assistido, nem uma trovejada, se quer uma pincelada de vento – exceto a brisa que normalmente vem das matas.
Lá em cima, por trás do amontoado de nuvens, uma luz escarlate vai manchando as partes alvas e azuis do céu como um espectro que se expande cada vez mais. A cor sangue tonifica de vermelho o chão e a cidade como se uma artéria imaginária dos deuses derramasse hemorragias fotoelétricas sobre as antenas e avenidas, sobre a superfície áspera das calçadas e sobre as pessoas atônitas – entre elas, poucas percebem que é o sol o autor desse prisma celestial.
É que a 150 milhões de quilômetros dali, no centro do sistema, nossa maior estrela transmuta-se em espasmos de explosões a proporções colossais. Infinitas quantidades de átomos enfurecidos de hidrogênio em seu núcleo não suportam o peso da pressão sobre si mesmo se se fundem, quase a ponto de antimatéria, causando ininterruptas reações nucleares por toda sua estrutura esférica. A cada segundo, as reações resultam na queima de 700 milhões de toneladas de hidrogênio, o que quimicamente faz liberar 386 bilhões de bilhões de megawatts de energia em forma de calor, radiações múltiplas e luz(muita luz) como o clarão tingindo a cidade neste momento.
Por aqui ninguém desconfia,mas daqui a alguns instantes todo o hidrogênio já terá se esgotado e o grande astro começará a queimar hélio, único combustível que lhe sobrará. Com isso, a energia liberada será potencialmente maior e ele transformar-se-á num gigantesco globo pulsante, variando a cada momento o seu diâmetro em milhões de quilômetros em direção as órbitas planetárias. Nesse ritmo,inchará sua massa até expandir-se feito uma bola incandescente de borracha e tomará como grãos de pó tudo o que estiver em seu caminho, começando pelo planeta Mercúrio, em seguida Vênus e, por fim, nós…
Nesta tarde, o sol brilha na forma de um prenúncio avisando que sua era chega ao fim.Antes de metamorfosear em tons de alaranjado – o que será presenciado daqui a exatos 8 minutos e 18 segundos – as pessoas que assistem o fenômeno entrarão em pânico.Serão vistas correndo ruas feito almas temendo os olhos do demônio, perderão o controle dos automóveis e das próprias tripas, pedirão perdão pelos pecados que nem chegaram a cometer.
Nisso, nas proximidades da Praça Pedro de Oliveira, incomodada com a agitação lá fora a senhorinha manda o velho espiar na varanda. Apoiando as mãos enfadadas no portão da frente, ele grita a mulher:
– Vem, Fia!Vem cá fora vê. Vem vê o sol como é que ele tá bonito! – e sorri, como se fosse a última vez.
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Farley Rocha, fã do Radiohead e do Seu Madruga, nasceu em 1982 e mora na cidade de Espera Feliz, interior de Minas. Professor por formação e poeta por obsessão, mantém o blog palavraleste.blogspot.com, espaço aonde publica seus textos e outras insanidades literárias.