Depois da chuva, quando sinais da tormenta diluviana não passarem de um fiapo orvalhado baixando sobre a cidade, o mundo enfim estará lavado de seus desmazelos e temores, sugados junto a enxurrada pela goela dos bueiros. Então, teremos a sensação de que por trás das nuvens dissipadas, o sol festejará de cima seus luminosos vestígios de alegria.
Depois da chuva, quando a ventania não passar de uma suave brisa roçando a copa das árvores, parabólicas e telhados, todas as crianças sairão para brincar descalças sobre as poças e riscarão na lama acumulada nas calçadas jogos de amarelinha na tarde recém-matizada de azul. Barquinhos de papel serão vistos atravessando avenidas e acostamentos.
Depois da chuva, quando abrirem as janelas das casas e as flores dos quintais retomarem a fotossíntese de suas pétalas, senhoras guardarão suas sombrinhas atrás da porta e sairão para passear na companhia de seus poodles – que deixarão para trás um rastro de patinhas carimbadas sobre o barro. Senhores retornarão às barbearias e sapatarias de costume para contarem suas velhas histórias repetidas – mas sempre instigantes, como se fossem inéditas.
Depois da chuva, quando o rio reintegrar-se a geografia sob as pontes e os peixes se acomodarem sonsos pelas margens, tanajuras, borboletas e pardais povoarão os ares entre as gotículas microscópicas a que se reduzirá a tempestade. Acima de nós, um prisma convexo se formará sobre a cidade pela refração abobadada de um arco-íris.
Um arco-íris que, depois da chuva, parecerá um enorme sorriso escancarado bem no meio do céu da tarde. E só isso nos será motivo suficiente para que saiamos juntos caminhando por aí, de mãos dadas, depois da chuva.
Farley Rocha, fã do Radiohead e do Seu Madruga, nasceu em 1982 e mora na cidade de Espera Feliz. Professor por formação e poeta por obsessão, mantém o blog palavraleste.blogspot.com, espaço aonde publica seus textos e outras insanidades literárias.