para Thiago PQD
Todos no bar ouvimos o tiro pairando seu estampido sobre as mesas e garrafas. Mas antes mesmo que o ruído seco ferisse nossos tímpanos, a bala já havia me vazado o corpo, na brutal leveza que tem uma arma espelindo chumbo a queima-roupas.
A trajetória do projétil iniciou cruzando os 2,5 centímetros que separavam o bico do revólver e eu. Depois, colidiu no atrito ardido com o meu peito perfurando primeiro minha camiseta de poliester branca e, em seguida, os frágeis poros da minha pele jovem. Com força e velocidade desproporcionais ao seu tamanho, a bala ultrapassou facilmente os tecidos do meu tórax, vencendo uma a uma as camadas de epiderme, gordura, músculos e outras fibras. Assim, logo tocou com violência a placa óssea do meu peito e a atravessou como se estilhaçasse uma fina tábua de argila. Com a precisão geométrica que geralmente têm os graves incidentes, perfurou um círculo perfeito no meio do esqueleto e seguiu caminho meu corpo adentro. Rompeu micro-vazos e pequenas artérias centrais, cortou películas e membranas que cobrem meus órgãos vitais e alvejou os brônquios do meu pulmão direito – mas o coração, que também estava na rota, (por todos os deuses possíveis ao meu lado) contraiu-se no exato instante em que a bala procurava minha alma.
Enquanto o projétil me percorria o tronco, sentia como se percorresse minha história inteira. Porque trouxe no mesmo tempo em que dura um relâmpago todas as lembranças do meu passado e futuro: o sorriso eterno da minha mãe, o abraço longo do meu pai que não vi, a voz de amizade da minha irmã mais velha, os olhos negros da minha sobrinha, o beijo loiro da minha namorada, as nuvens do céu que um dia pisei e todas as pessoas que ainda não amei… Perplexo, buscava em vão nos olhos do atirador o motivo que talvez nem ele pudesse compreender.
A trajetória que a morte me encontrava durou exatamente 0,00000032 segundos entre o explodir da pólvora e o último ponto em que a bala, próximo a omoplata e a coluna vertebral, alojou-se.
Mas ainda assim fui mais rápido. Fui mais forte. Eu não queria partir daquele jeito. E, só por isso, sobrevivi ao tiro, prevaleci à morte. Na trajetória que cabe aos verdadeiros homens de bem…
* * *
Farley Rocha, fã do Radiohead e do Seu Madruga, nasceu em 1982 e mora na cidade de Espera Feliz, interior de Minas. Professor por formação e poeta por obsessão, mantém o blog palavraleste.blogspot.com, espaço aonde publica seus textos e outras insanidades literárias.