De onde estou, apoiado pelo cotovelo no balcão da Boutique da Pinga, possoavistar faróis brilhandona estrada, lá do alto do morro. São automóveis,ônibus e vansque chegam de todas as partes e trazempequenas multidões vindas de Espera Feliz, Carangola, Caiana, Dores e adjacências. Embora não tenha lua, o contorno da Pedra Menina também pode ser visto sob nuvens que parecem anunciar chuva.
Quem é de fora não imagina, mas estamos no meio de uma planície chamada Paraíso, tão milenar quanto o folclore das Américas. Estamos na roça, longe da capital e da luz ambiente dos pubs de Juiz de Fora. Por isso, essa festa que atravessa gerações desde 1980 é o rock mais rural que se tem notícia aqui na serra.
Esta é a única época do ano em que o silêncio sideral do vale é rompido por frequências de alto-falantes. Tanto que uma mixórdia de sons rabisca interseções agudas nos meus ouvidos e desisto de distinguir o que é guitarra, eletrosamba, funk ou forró.
No primeiro “ai, se eu te pego” que ouço,saio pra uma volta.
Caminho entre os vãos no labirinto formado pelo público multi-faixa-etário.As pessoas, por dentro de agasalhos e luvas, agitam-se feito uma quermesse de cores ambulantes sob uma fina poeira de névoa. São meados de outono, mas faz frio de alto inverno e por isso revezo minhas mãos ora nos bolsos, ora no copo descartável tilintando gelo.
Aliás, não sou o único a bebericar destilado.Por todo canto há grupos de amigos rodeando uma garrafade qualquer coisa. Por onde passo, não raro sou alvejado por flashes fotográficos capturando sorrisos alheios – o que me faz pensar que amanhã minha cara aparecerá anônima em álbuns do facebook. Retorno por onde vim e decido pedir mais uma ao Canibal (mas desisto).
Enquanto adolescentes histéricas ao meu lado coreografam rits do último verão, lembro-me do lado B do evento, onde aventureiros, neohippies e festeiros de gosto mais underground preferem ficar. Ao lado do estacionamento, uma infinidade de barracas de camping, pelo formato iglu, faz lembrar à distância uma confraria de tartarugas com casco de nylon e poliéster, dispostas às margens do riacho frio que cruza o vale. Lá há uma espécie de festa paralela, que somente os campistas e cópias baratas de cronista beatnik podem imaginar.
No acampamento rola o esquema fogueira e violão, aonde sempre há um menestrel meio embriagado,com pernas cruzadas sobre a grama, arremedando canções da época em que nenhum de nós era nascido.Sentada sob os arbustos e frente às barracas, a moçada conversa sobre filmes e poesia, trocam ideia sobre viagens e bandas preferidas. Assim, no varar da madrugada boêmia,riem,choram,cantam e dançam.
No meio dessa festa, imagino a controvérsia na qual se transforma o vale do Paraíso neste momento. Em dias comuns, as horas passam lentas para os homens de chapéu de palha que assoviam por suas estradas de terra, entre as lavouras. Agora dão lugar aos nichos fragmentados de gente nessa baladacom jeitão de interior: são lavradores, universitários, emos,micareteirose a vaga caricatura de um Woodstock hereditário no meio das montanhas.
Mas todos se divertem – até que pingoscomeçam a riscar linhas úmidas através da luz dos postes e barraquinhas de drink. Enquanto uns correm e outros parecem não se incomodar com a chuva, aperto-me entre amigos e desconhecidos embaixo dos toldos e continuo conversas com pessoas que talvez nunca mais veja. Aproveito para cumprimentar parceiros de outras eras. Observo a festa que aos poucos vai se derretendo junto ao temporal.
Até que por fim, nos convencemos de que dessa noite o que nos restará vai ser apenas o Paraíso. Num belo e translúcido fim de night.
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Farley Rocha, fã do Radiohead e do Seu Madruga, nasceu em 1982 e mora na cidade de Espera Feliz, interior de Minas. Professor por formação e poeta por obsessão, mantém o blog palavraleste.blogspot.com, espaço aonde publica seus textos e outras insanidades literárias.