Um dos últimos livros* que li me ensinou que viver não é provisório. E sim uma oportunidade única de evolução. Todos os dias me pergunto se tenho aproveitado bem a minha.
Deixar para amanhã o que se pode fazer hoje é uma máxima que vai e volta, perturbando o meu juízo. Será que eu não podia estar fazendo mais? Trabalhando mais? A resposta é não.
Somos uma sociedade cansada em busca de sobrevivência. Por que tanto cansaço? Por que tanta ansiedade em relação à vida? Porque a vida ativa roubou o lugar da vida contemplativa. O caminho deveria ser paralelo: uma vida de fazer e agir que permite contemplar e sentir. Mas não tem sido assim. O tempo de pausa foi engolido pela urgência de demandas vazias, pela enxurrada de informações falsas que sugam 80% dos nossos valores, por necessidades de consumo imediatista que amanhã já não são mais objetos de desejo, por um dia de trabalho estressante demais que só permite o descanso merecido uma vez ao ano, por teorias conspiratórias que colocam humanidade contra humanidade na defesa de direitos que, na verdade, já são nossos antes de qualquer bandeira levantada por um governante. A vida ativa tem roubado todas as possibilidades de vida contemplativa.
Nos últimos dias, a crise sanitária do coronavírus colocou a sociedade do cansaço em stand by. A sociedade do desempenho, aquela que busca por resultados quantitativos, foi obrigada a desacelerar. O homem que se transformou numa máquina de performance, onde cansaço e esgotamento excessivos tornaram-se medidores de sucesso e realizações pessoais, teve que mudar o modus operandi. Quanto maior o desgaste, maior o reconhecimento social, maior a falsa ilusão de satisfação e menor o engrandecimento da alma. O que vem de fora, sacia o ego, mas esvazia o coração.
Na sociedade do desempenho, o dever deu lugar ao poder. A preocupação por uma boa vida deu lugar à tentativa de sobrevivência. E assim, essa boa vida escapa, tanto no agora, quanto no depois. O abismo do futuro cega as capacidades de realizar hoje. O privilégio do único respirar que importa, o agora, foi esquecido. A preocupação com o que vem a seguir, nos impede de agir pelo bem do agora. Um passo de cada vez e estaríamos livres de ansiedades e incertezas que cegam a razão. Nesse momento, o passo é a pausa. O maior milagre não é sobreviver. O real milagre consiste no fato de os seres humanos pura e simplesmente nascerem.
A rotina dos números e dos resultados nos desconectou do divino, nos afastou dos rituais de celebração e agradecimento pelo milagre da vida. Todas as formas de vida ativa, tanto o produzir quanto o agir, decaem ao patamar do trabalho, da produção. Inseridos na roda de valoração reagimos com hiperatividade e aí vem o cansaço profundo. Silenciamos o eu, deixamos de sentir e passamos a apenas ocupar o mundo no papel de cliente, no valor de mercado. Iludidos pelo agir e fazer, pensando que assim estamos contribuindo, quando, na verdade, estamos nos anulando enquanto almas e seres capazes de sentir.
Já é tempo de rompermos com essa casa mercantil. Já é hora de transformá-la novamente numa moradia, num lugar de celebração, onde valha a pena viver. Ceder lugar a possibilidade de uma vida que contempla enquanto é ativa não é colocar-se passivo e em concordância a tudo o que acontece. Ao contrário. A vida contemplativa oferece resistência aos estímulos opressivos e intrusivos de uma sociedade voltada ao desempenho e ao cansaço.
Quando tudo isso acabar desejo que, uma das lições, seja a capacidade de harmonizar atividade e contemplação. Que possamos celebrar de verdade a vida em conexão com o divino.
*Esta crônica é inspirada no livro Sociedade do Cansaço de Byung-Chul Han, Editora Vozes
Por Sylvia Dimittria.