Este é um artigo ou crônica pessoal de Mara Rubia.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Rodeado por cores, transformava paisagens vistas e sentidas em óleo sobre tela com maestria. Uma intimidade com os pincéis de deixar os amantes das belas artes admirados.
A fama de seu talento começou a percorrer a redondeza e várias encomendas iam chegando ao pequeno ateliê-garagem.
Tinha um estilo próprio. Retratava o céu, nas várias nuances de sua coloração ao longo do dia, com alguma construção feita pelo homem. Apreciava a dualidade céu e terra, divino e humano, natural e alterado. O quadro que lhe rendera o “pontapé inicial” para o reconhecimento era de céu rosado e uma casinha simples, à beira de uma estrada asfaltada. “Solidão”. Outro, que chegou a ser premiado em um concurso estadual, tinha o céu mais escurecido, uma rua estreita de paralelepípedos molhados e casas com portas coloridas. “Saudade”.
Nunca pintava pessoas. Talvez para que qualquer um pudesse se sentir ali. Talvez para não limitar a imaginação. Ou, quem sabe, por não ter a habilidade de retratá-las. Fato é que não sentia essa necessidade em sua obra.
O que era puro prazer e intuição passou a ser profissão. Conseguiu sair de um emprego burocrático para viver da arte.
Aceitava apenas os pedidos que condiziam com sua personalidade artística, aquele contraste maravilhoso do sublime natural com a modificação resultante dos gostos e anseios humanos. Tinha a convicção de se manter fiel ao que externava esse paradoxo da vida e da mente, sua marca criativa.
Aos poucos, aumentou o ateliê. E, tendo mais dinheiro, passou a visitar galerias de arte e museus famosos que estiveram permeando seus sonhos há tempos. Emocionava-se ao estar de frente a pinceladas reais de seus pintores favoritos, o que havia de mais genuíno e intuitivo, como uma contração inquietante, sedenta, que vem do âmago e se esvai. Algo que acontecia com ele, ao escolher as cores do céu de acordo com seu temperamento. Uma necessidade pessoal.
Em contrapartida, com o passar do tempo, pintar passou a ser a burocracia de anotações dos desejos dos compradores e da elaboração automática de quadros rentáveis.
Ele acreditou, no início, que conseguiria viver de suas inspirações, aquelas que lhe deram destaque e renome. Mas, percebeu que o desejo por alterações era uma constante. “Queria sem esse tom de rosa, porque não combina com a minha sala”, “pode ser com essa rua de paralelepípedo, só com o céu mais alegre, mais azul”, “dá para fazer com menos nuvens?”.
Não sabendo como sair dessa rotina viciante, acomodada e opaca, se habituou a retratar os gostos dos clientes a tal ponto que os atendia mecanicamente, mesmo aquele senhor, um apreciador desconhecido:
– Como vai ser o céu? – perguntou, com a caneta na mão e a face voltada para a agenda de pedidos.
– Bonito!
– Então, bem azul – anotou. – Pode ter nuvens?
– Essa é a sua definição de céu bonito? – quis saber o homem, sorrindo amigavelmente.
– É o que a maioria gosta. Agrada ao senhor?
– Sim, sim! É lindo o céu azul… de uma manhã primaveril, com algumas nuvens e um pouco de sol… Gosto também do céu com tons alaranjados, já se direcionando para o final da tarde. Costumo chamá-lo de céu das 6, ou das 5:30, dependendo da estação. O sol vai se escondendo e deixando um rastro no horizonte… – ele desenhava o pôr do sol com as mãos enquanto falava. – Lindo! Eu também gosto do céu cinza, que dá um clima ameno e traz a mensagem de chuva. Ou da vista de um céu mais embaçado pela água que já cai, carregando a vida… Gosto até de quando tem tempestade e a luminosidade fica por conta dos flashes criados pelos raios…
O artista gostou das definições que o senhor lhe passou. Um sorrido de canto, inclusive, despontou em seu semblante.
– Mas, o senhor quer três quadros, não é!? Sendo assim, acho que precisa eliminar uns dois desses daí.
– Eu ainda nem acabei, meu jovem. Como posso eliminar algum céu? Nem tenho essa autoridade toda.
Tanta coisa a fazer. Encomendas pela metade, pincéis sujos, tintas faltando. Precisava comprar mais azul. Era boa a prosa, mas parecia que ia longe. Seu tempo era corrido.
– Eu gosto das cores que surgem com a aurora boreal, também. Um espetáculo! De deixar qualquer artista boquiaberto. Você já teve a oportunidade de presenciar a aurora boreal?
– Só por foto ou televisão – respondeu secamente.
– E a noite!? Como me esquecer do momento em que o céu é um breu, modesto, e deixa as estrelas brilharem? Para ser sincero, mesmo quando elas não aparecem, a vastidão que um céu negro nos oferece é de tirar o fôlego! Não acha?
– Acho, sim! – ele queria ser atencioso, porém precisava encurtar o assunto e ir para o lado prático – Então, são muitas ideias boas. Quais são suas três preferidas?
– Quais são as suas, meu jovem artista?
– Todas são ótimas! – adiantou-se o vendedor.
– Mas, então me diga, qual é o seu céu favorito? – sorriu o sábio senhor.
– Depende do meu humor – respondeu espontaneamente e sorriu desamparado, sabendo que aquele homem exigiria uma explicação melhor. – Pense na leitura de um livro – rendeu-se. – Quando você vive a história de um personagem, as sensações dele passam a ser suas e acabam respingando em quem está sua volta. A vida, na minha visão, é mais ou menos isso. A gente está sempre reagindo a estímulos. Quando eu pinto uma tela, eu compartilho impressões diversas, causadas por vários motivos… – foi sincero – Compartilho e me sinto vazio, limpo… Como se eu respingasse de propósito. E eu consigo me sentir o criador desses estímulos e não apenas o observador – divagou. – Dá pra entender?
– Eu sabia que eu tinha vindo ao lugar certo! – satisfez-se o admirador – Quando eu posso pegar as obras?
– E como eu devo pintá-las?
– Você é que não entendeu. Eu quero ser apenas o leitor. Ligue-me quando terminá-las, está certo?
O senhor fez um aceno com a cabeça, colocou seu chapéu e saiu, deixando o artista confuso.
Ao longo daquele mês, olhou as três telas em branco, a sua espera. Podia fazer o que quisesse. E o que queria fazer?
Observou em si o efeito da liberdade. Uma certa insegurança. A pressão de não decepcionar. A autocobrança por criar. Mais ainda, sentiu algo como medo, vindo da inquietação de ser só ele e “seus céus” a respingarem os tecidos. Ele, que já tinha se acostumado a reproduzir os céus alheios.
Enfim, esboçou um sorriso, quase sem forma, ainda tímido.
Três telas em branco!
Por Mara Rubia.
Graduada em Letras e Pedagogia, atua como Especialista em Educação Básica na rede estadual, mas para este espaço, esta não é a parte mais interessante sobre ela. Aqui, o que mais importa são as várias facetas das vozes que a habitam e que insistem em emergir através das palavras. Nesse lugar, ela será tantas, mas tantas, que seria impossível uma definição.