Este é um artigo ou crônica pessoal de Mara Rubia.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Ainda estava cedo e ele queria dormir só mais um pouquinho. Eram os últimos dias das férias. Não foi com entusiasmo que ouviu o chamado da mãe, e, cada vez que seu nome era pronunciado, o tom de voz da mulher ganhava mais força. Com certa sabedoria, que já tinha adquirido àquela idade, sabia que era melhor levantar de uma vez, antes que ela resolvesse entrar no quarto, porque se ela tivesse que entrar no quarto para fazê-lo levantar, aí “o coro ia comer”, como ela mesma dizia – e fazia acontecer.
Rolou para o lado da cama que era da mãe e do irmão mais novo, o lado oposto à parede. Sentiu a umidade do colchão naquele lugar que já estava sem o calor humano. Três dias de chuva, era muita água para o telhado velho da casa aguentar. As goteiras foram ficando mais audaciosas desde o final da tarde do primeiro dia chuvoso.
– Se arruma pra gente ir na escola.
– Mãe, eu tô de férias!
– E se eu não for hoje lá, você vai ficar de férias o ano todo. Pode tirar esse riso da cara! E anda logo que quero chegar cedo em casa pra secar esse chão.
– Ah! Põe um potinho do seu lado da cama.
O anúncio que ouvira na rádio, na semana anterior, era bem enfático quanto ao período de matrícula escolar, aquele era o último dia. Claro que ela não ficou nada feliz por ter que sair embaixo de chuva com duas crianças. E era bem possível que fosse mentira, pois as escolas aceitam aluno o ano inteiro. Mas, para não correr o risco de o menino mais velho ficar sem vaga na que era a mais próxima de sua casa, preferiu não arriscar. Tinha passado as duas últimas semanas, antes daquela chuva incessante chegar, trabalhando sem parar, revirando o lixo atrás dos reciclados, e acabara deixando o que não era de importância imediata para depois.
– Ô, mãe, o ônibus da escola vai passar aqui pra pegar a gente?
– Para de ser besta, menino! Vê se vão mandar um ônibus, bem nas férias, só pra gente ir lá fazer matrícula. E nem se quisessem! Como que o ônibus ia chegar aqui com esse barro todo?
– E como a gente vai? – perguntou desanimado, já sabendo a resposta.
– Na segunda, eu achei duas sombrinhas que dá pra usar. Você fica com uma e eu e o seu irmão com a outra. Pega ali no corredor.
A escola não era tão perto do bairro periférico no qual eles moravam, ainda assim, era a mais próxima. O filho mais novo ainda não tinha idade para estudar e, enquanto o mais velho estava na escola, o pequeno a acompanhava nas andanças pelas ruas, antes da pandemia chegar. Tinha até seus benefícios o maior estar sem aula presencial, porque dava pra ele tomar conta do irmão e o trabalho rendia. Esses três últimos dias estavam complicando as coisas. Duas crianças dentro de casa, sem energia elétrica, porque sempre que chovia era o mesmo drama. Sem energia e, às vezes, sem água. Colocara uns baldes na calçada para ter, pelo menos, a água da chuva para as necessidades básicas. Precisava voltar a trabalhar. Estava difícil arrumar emprego. Faxinava cinco casas antes de ter outro filho. Acabou sem serviço, sem o pai do mais novo, sem pensão e tendo que ser o único meio de sustento das crianças. Não reclamava. A não ser em dias como aqueles. Chuva, goteira, barro, falta de luz e de água, pouca comida… Não há otimismo em dias melhores que se sustente com aquela agonia.
Chegaram na rua da escola, num trajeto marcado pelas reclamações do mais velho, que sujara o tênis “novo” no barro, e pelos braços dormentes de carregar o pequeno, que já não era tão pequeno como antes, e ir revezando sombrinha e criança, ora num, ora noutro.
– Olha, mãe! Que legal!
A rua da escola estava asfaltada. Asfalto recente. Duas semanas atrás, ele não estava ali quando ela tomara o rumo das bandas do centro da cidade para catar reciclado. Há duas semanas, aquela rua era como ela se lembrava das ruas no tempo que era criança, com paralelepípedo. Agora, tudo estava ganhando aquela camada preta apática. Quente, muito quente quando refletia o sol escaldante do verão. E, pelo visto, ruim também em dias chuvosos, pois a água da chuva, sem ter vasão nos vãos dos paralelepípedos, transbordara para as calçadas.
– Podiam asfaltar a nossa também, né!?
– A nossa não é vista.
– A gente vê ela.
Não era o tipo de mãe que jogava toda a verdade de uma realidade dura numa conversa como aquela. Mais que a rua de terra, eles é que não eram vistos. Mas, não precisava falar isso para uma criança que ainda conservava a ingenuidade capaz de trazer um sorriso ao ver um asfalto, mesmo esse asfalto estando numa rua que já era calçada. Melhor assim. Uma blindagem natural que a vida oferecia para que os pequenos pudessem ter bons momentos e boas lembranças da infância. Não tiraria isso dele. Não agora.
Ao chegarem diante da escola, uma pequena faixa amarrada no portão. É que, devido ao mau tempo e com a possibilidade de enchentes nas redondezas, todo serviço escolar tinha sido interrompido, desde o dia anterior, e a escola estava à disposição da prefeitura para receber desabrigados. As matrículas foram prorrogadas.
No começo da tarde do dia anterior, os burburinhos de outra grande enchente, nos moldes, talvez, daquela do ano passado, circulavam entre os vizinhos. Parece que um carro de som estava anunciando isso no centro da cidade. Sim, ela estava com medo, mas o que poderia fazer? Não tinha onde colocar os poucos móveis ganhados após ter perdido os seus na outra enchente. O que poderia fazer além de subir um pouco a mobília com tijolos que pegara em algumas construções? Nada. Nada!
Respirando fundo, chamou o menino e deu meia volta. Ora de voltar para casa e rezar para que o rio não subisse mais.
– Se você achar um esqueite no lixo, eu vou poder usar pra vir pra escola. Olha esse asfalto! Lisinho, lisinho! – admirou o garoto.
Por Mara Rubia.
Graduada em Letras e Pedagogia, atua como Especialista em Educação Básica na rede estadual, mas para este espaço, esta não é a parte mais interessante sobre ela. Aqui, o que mais importa são as várias facetas das vozes que a habitam e que insistem em emergir através das palavras. Nesse lugar, ela será tantas, mas tantas, que seria impossível uma definição.