Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Uma cidade em preto & branco

Observar estas imagens desbotadas pelo esquecimento nos permite ter contato com uma cidade da qual gerações recentes nunca tiveram notícias.

Publicado em 17/11/2020 - 11:34    |    Última atualização: 17/11/2020 - 11:35
 

Eruditos de toda época já disseram, cada qual à sua maneira, que “um povo que desconhece a própria história é um povo sem identidade”. Porque quando não se conserva o passado, das grandes ou pequenas civilizações, dos pormenores costumes aos episódios legendários, estamos todos fadados a um presente vazio, a um futuro sem referências e a uma vida desprovida de qualquer brilho.

Mas por sorte dos acasos que não se pode premeditar, de vez em quando surgem alguns bem-feitores empenhados em resgatar aquilo que muitos de nós, lamentavelmente, nem damos conta de nos importar. Como sentinelas vigilantes dos portais de nossas memórias, garimpam o solo sedimentado pelo tempo e trazem à tona os tesouros da nossa própria arqueologia que desconhecemos – mas que explicam muito do que somos.

É o caso do sr. Ayrton de Oliveira, retratista que viveu nos tempos remotos de Espera Feliz e assinou, por cerca de vinte anos, a coluna “Reminiscências de uma terra fria” do jornal local O Esperafelicense. Como que por extensão da profissão que exercia, mas utilizando a escrita no lugar da máquina fotográfica, sr. Ayrton retratou em cada uma de suas crônicas mensais as cenas quotidianas de nossas ruas, bares e praças dos anos 40, 50 e 60 de uma cidade da qual já não restam muitos vestígios.

Com isso, mesmo que não fosse por pretensão, o retratista/cronista produziu ao longo de duas décadas um respeitável documento em forma de causos e anedotas locais, capazes de nos revelar em detalhes como eram os hábitos e a rotina dos que viveram nas origens de nosso passado comum. E o mais importante: fez isso não pelos métodos científicos e frios de um historiador, mas como narrador-personagem que testemunhou de perto uma época que só conhecemos de ouvido.

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Nesta mesma pegada, um outro esperafelicense que vive no exterior já há vários anos criou uma página no Facebook chamada “Espera Feliz Antigamente”. José Afonso de Souza, talvez motivado pela saudade, desde 2000 reúne e publica diariamente em sua rede social fotografias antigas de lugares e pessoas que remontam várias camadas de nossa história, desde a infância de nossos pais e avós até a virada para o século XXI. São colaborações gentilmente cedidas pelos – até agora – 7.653 membros do grupo, de seus registros de álbuns familiares, casamentos, aniversários, solenidades cívicas e formaturas escolares que, juntas, compõem um acervo de incalculável valor tanto histórico quanto sentimental.

Não é caso de mera nostalgia ou mania de quem vive de museu, mas observar estas imagens desbotadas pelo esquecimento nos permite ter contato com uma cidade da qual gerações recentes nunca tiveram notícias. É como se se abrisse na timeline do smartphone uma cortina de lembranças em preto e branco que nos fazem compreender um pouco mais sobre a saga dos que nos precederam, a composição original do nosso casario desmantelado pela modernidade e, por conseguinte, sobre nós mesmos.

É o que sinto quando olho as fotografias do José Afonso ou quando leio as crônicas do sr. Ayrton de Oliveira. A partir delas, ao passar pela atual Praça da Bandeira e reconstruí-la num exercício de imaginação, vislumbro-a com aquela mesma aparência que tinha há 100 anos. Era ali não apenas o centro boêmio da cidade, mas também o berço de nascimento dos seus primeiros tijolos e ruas. De um lado o Bar Central e sua efervescência de trabalhadores das mineradoras de caulim e mica; de outro, o efêmero Café Coringa com suas discretas confabulações entre políticos e doutores sob penumbras de cigarro. Logo à frente, o já demolido (e quase apagado da memória) Hotel Espera Feliz, onde pernoitaram na aurora dos primeiros anos viajantes que aportavam na velha estação de trem petrificada logo em frente.

Já no centro novo, nas redondezas da Prefeitura Municipal, sempre que atravesso o piso cimentado do Calçadão ou as faixas de pedestre da rua João Sebastião de Amorim me vem a visão de que por ali, antes de existirem os canteiros do jardim central, eram linhas paralelas de ferro aglutinadas por dormentes que dividiam ao meio as duas vias hoje asfaltadas, conduzindo a Maria Fumaça que passava apitando pelo menos duas vezes ao dia.

Também através dessas fotos e relatos que felizmente não sucumbiram à ferrugem do tempo é que podemos conhecer a configuração primária do cruzamento da rua Henrique Gripp Filho com a Jayme Tolêdo, nas imediações da Praça Pedro de Oliveira. No início da rua João Carlos, o prédio da esquina com a Reta, onde hoje funciona uma sorveteria, teve instalada a primeira delegacia policial, que posteriormente abrigou a loja Casa das Tintas – eternizada na memória coletiva por ter sido devastada por um incêndio no final da década de 1970. Na esquina oposta, o atual Bar Boca do Povo com sua arquitetura da primeira era de Espera Feliz foi a padaria do sr. Sebastião Serafim, de onde a reduzida população de 40 anos atrás aguardava pão fresco tal qual a confirmação de um novo Papa: anunciado pela fumaça branca da chaminé. Do outro lado da rua, em uma das portas do complexo de casarões removidos há mais de 30 anos para a construção de novos prédios, entre o da Galeria Paulo Moura, ficava a emblemática barbearia do sr. Alencar de Oliveira, onde se encontravam figuras folclóricas da comunidade como o dentista Tililiu com suas façanhas incorrigíveis, o boticário Américo Cândido de Souza com sua requisitado dom de fármaco e curandeiro, e o empresário da mineração Dr. Alexandre com suas artimanhas de homem capitalista. Próximo dali, na esquina onde adolescentes se beijam com gosto de sorvete nas mesinhas da Açaiteria, era um posto de gasolina que abastecia os primeiros veículos adquiridos por fazendeiros da região com seus rudimentares caminhões a diesel, Jeep Willys e F-75 com motores de tração.

Destas edificações que testemunharam o decorrer da história local, apenas algumas poucas, corajosamente, se mantêm de pé. A exemplo do Educandário Sacramentino (ou, como foi apelidado, o Seminário), com suas amarelecidas paredes de pedra e seus silenciosos corredores povoados por assombrações eclesiásticas. Também sobreviveram as casinhas gêmeas da rua João Alves de Barros com sua icônica escada de musgos na calçada, além do bangalô da família Valadão em frente ao Centro Espírita, a residência do professor Renato Nacarati e mais meia-dúzia de casarões ao longo da Fioravante Padula, que resistem à implacável, e equivocada, natureza do “progresso”.

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Embora eu não tenha idade para tanto, a sensação é que são minhas as lembranças dessa Espera Feliz antiga, quando nossas avenidas centrais eram de terra batida e ainda não haviam postes de iluminação elétrica sobre as calçadas. Quando via-se gaiolas ao sol da manhã dependuradas nas janelas da Rua Pereira e carros de boi transitando em frente à Igreja Matriz. Foi uma época em que celebravam alfaiates como talentosos artistas e relojoeiros como mestres de diminutas engrenagens de bolso e de pulso. Comprava-se de leiteiros com seus latões de torneiras acoplados em charretes e de verdureiros com seus grandes cestos artesanais na garupa das bicicletas. As sapatarias, geralmente um minúsculo cubículo cheirando a graxa e couro cru, funcionavam como bancas de jornal, onde homens à toa reunidos na calçada fumavam, contavam piadas e se atualizavam das notícias locais e do mundo.

Certamente, a atmosfera que tanto as crônicas do sr. Ayrton quanto as fotografias do José Afonso conservam – e que nos despertam curiosidades sobre este universo que ficou para traz – é o que hoje nos possibilita experimentarmos os áureos tempos das mesmas ruas onde habitamos, mas que são tão diferentes destas que conhecemos. É porque nestes registros que devem ser mantidos a sete chaves permanecem o charme e o romantismo de uma era em que a estação ferroviária conferia a Espera Feliz ares de uma cidade portuária em plena serra, com seu fluxo de cavalheiros e damas trajados com ternos pretos, chapéus de lebre e vestidos longos como num filme francês do século XIX – numa espécie de Belle Époque do interior de Minas.

Além disso, de todo o acervo arquitetônico remanescente deste período cada vez mais longínquo, aquele que desempenha o papel de protagonista da nossa história é, sem dúvidas, o Hotel Montanhês. Pois graças ao espírito empreendedor e o sentimento de pertencimento de seu atual proprietário, o jovem Phillip Fumian, o prédio que melhor ilustra a glória vivida por nossos antepassados ainda mantém imortalizadas em sua fachada art déco as mesmas características originais de sua inauguração, datada de 1942.

Acho que por isso, sempre que passamos pela estreita calçada aos pés do Montanhês temos a sensação de estar diante de uma autoridade imortalizada, que guarda no interior maciço de suas imponentes e coloridas paredes o tempo de uma cidade em preto e branco que não tivemos o privilégio de vivenciar.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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