Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Um gato entre as estrelas

“O gato possui beleza sem vaidade, força sem insolência, coragem sem ferocidade, todas as virtudes do homem sem vícios.” – Lord Byron

Publicado em 14/07/2022 - 14:08    |    Última atualização: 14/07/2022 - 14:08
 

Já tratei de gatos nesta coluna, quando escrevi sobre Max, o gatinho siamês que adotei. Desta vez retorno ao tema não para falar da ternura que nos trazem os gatos que chegam, mas do vazio que nos deixam aqueles que se vão.

É que há algumas semanas uma grande amiga perdeu seu bichano. E não foi porque escapuliu pela varanda, extraviou-se em labirintos de quintais alheios ou se enrabichou por uma fêmea de um bairro distante. Depois de doze anos, o velho Wood, cuja pelagem negra já se enevoava de fios grisalhos, não resistiu aos males da idade e sucumbiu à última de suas sete vidas.

Minha amiga ficou desolada. Para ela, essa perda representa bem mais do que uma despedida. Porque junto com a finitude de seu bicho de estimação, encerrou-se também um ciclo de sua própria existência, como se um ponto final interrompesse bruscamente uma longa história de afeto e cumplicidade.

No decorrer do tempo, Wood se fez presente em sua vida como um amigo de todas as horas, ronronando alegre por suas conquistas, acolhendo-a solene nos momentos de frustração. Ao chegar em casa após o trabalho, era ele quem a recepcionava primeiro, como um boneco de pelúcia espreguiçado na janela, um bibelô dependurado na cortina da sala. Ao sair cedo pela manhã, era ele quem se despedia por último, acompanhando-a à porta com um prolongado miado de “volte logo”.

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Não posso medir a dor de minha amiga, mas posso definitivamente compreender seu tamanho, já que também eu convivo em casa com um gato. Esse dócil animal doméstico com garras de fera selvagem, apreciado pelas civilizações desde o Egito antigo, ganha status de membro da família ao passo que aprendemos a reconhecer suas manias, a lidar com sua personalidade, a entreter nosso tédio com sua aura de carinho. Feito um parente querido, Wood ocupava esse mesmo espaço no coração da minha amiga, que agora pulsa melancólico pelo luto prematuro.

Diferente de uma planta, que quando seca as folhas troca-se o vaso ou aduba-se as raízes, um felino é insubstituível. Porque além do nome que escolhemos, cada um carrega em si uma marca única, um selo de identidade que os diferencia dos demais: o fato de ter partilhado conosco uma época de nossa vida, ter testemunhado quem fomos e tudo aquilo que nos transformou em quem somos. De alguma forma, no espelho esverdeado dos olhos de Wood refletiam as memórias guardadas por minha amiga.

Quem de nós que já não teve um bichinho que ressurge cristalino ao evocarmos o passado? São lembranças assim, eternizadas pela imagem que guardamos de nossos bichos, que fazem deles personagens singulares, muitas vezes protagonistas da própria história que vivemos.

Minha amiga perdeu um gato, o que é irreparável. Mas se lhe serve de consolo, para além da tristeza da perda e da saudade que virá, a falta de sua pequena pantera será recompensada pelas boas recordações. E toda vez que uma estrela cintilar no céu, será como se Wood piscasse seus verdes olhos para ela, chamando-a para fazer da lua sua bolinha de brinquedo.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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