Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Dos frequentadores noturnos dos bares de Espera Feliz existe um personagem bastante carismático que circula entre as mesas dispostas pelas calçadas. Serrote, um gentil e educado cachorro de rua, é o boêmio mais famoso da cidade.
Feito um andarilho urbano galanteador de cadelas, ao cair da noite ele fica zanzando de bar em bar preenchendo seu tempo com as pessoas que encontra. No final da tarde marca presença no Coffe Beer, depois passa de relance pela Casa Mari, dá as caras no Zero Grau e, geralmente, finaliza o rolê no Bar do Alemes, quando então se retira para repousar em seu sono dos que retornam da rotina desgastante das farras.
Não se sabe quem o batizou assim, mas devido suas características de vira-latas pedinte deram a ele o nome “Serrote” – gíria equivalente a “filão”, “pidão” ou “folgado”. É que todas as noites, com a mesma feição mansa dos animais domesticados, ele chega quieto como quem não quer nada, aproxima-se das mesas à beira da rua e, como que puxando um papo com os clientes, aguarda qualquer cortesia que lhe oferecem das porções de filé com fritas, fígado com jiló ou frango à passarinho.
Mas não só de comida sobrevive este cão esperto. No fundo ele gosta mesmo é de gente. Com seu jeito de cachorro malandro, quando menos se espera ele surge entre as cadeiras sob toldos e marquises e apoia o queixo no joelho dos que estão sentados. Os mais intolerantes o espantam com um “sai pra lá, Serrote!”. Já os que têm empatia ou mesmo paciência, o acariciam a testa e as orelhas dizendo mimos que ele adora ouvir – em retribuição, abana a calda sinalizando sorrisos.
É que para ele o ditado se inverte: são os homens os melhores amigos dos cães (e as mulheres, evidentemente).
Embora não tenha dono, há uma família na Rua José Grillo que o abriga e zela por seus cuidados. Por isso que seus pelos caramelados andam sempre limpos e seu físico esbanja saúde. Mesmo assim, Serrote não abre mão da liberdade que tem, pois gosta de transitar pelo centro da cidade em passeios que duram até alta madrugada. Fora os domingos, único dia que se reserva para descansar na casa onde pernoita, esta é sua rotina
Mas ele não traz nos olhos aquela revolta selvagem dos cães vadios. É como se a sua descarada inteligência o permitisse bons modos, conservando na etiqueta dos gestos a nobreza e a civilidade dos animais de estimação. Tanto que raramente é visto em matilha, como se evitasse seus pares que perseguem raivosos a roda dos carros.
Serrote prefere mesmo é caminhar sozinho, não por arrogância ou por ser metido a pedigree, mas por às vezes confundir os próprios instintos e achar que tem alma de gente. Exceto quando se encontra com Salsicha, seu amigo de longas datas caninas com quem brinca de lutinha nos gramados da Praça Cira Rosa de Assis ou de pique-pega nos jardins do Morro da Igreja.
Um dia Serrote apareceu com uma namorada. Era uma elegante poodle com laços coloridos na pelagem branca. Como se a levasse a um primeiro encontro, chegou com pose de lorde à esquina do Tomate Seco, onde beliscaram lascas de filé mignon ao molho-madeira que os clientes lhes serviam por debaixo da mesa. Enquanto jantavam, Serrote fazia charmes no pescoço da donzela, imitando o galã da “Dama e o Vagabundo”. Popular não só entre os da sua espécie, Serrote é um vira-latas muito bem relacionado: tem um amigo médico, desperta o olhar das moças por onde passa, frequenta petshops, convive entre políticos e artistas, recebe afagos de qualquer transeunte. Um quase blogueirinho, ele tem até perfil no Instagram, onde participa com selfies e stories das suas peripécias em estilo bon-vivant. Porque é pelos bares da cidade que Serrote é feliz, interagindo com todos como se fosse um de nós.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com