Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Estou preso entre barras quadriculadas de um porta-retratos. Contudo, sinto-me protegido por lembranças distantes que – assim espero – devem pensar em mim.
Daqui, onde estou agora, posso ver que do lado de fora há um sofá escuro e uma mesinha no interior de uma sala. À minha direita, uma televisão. Acima, um punhado de garrafas de vinho que não consigo ver o rótulo. Com janelas e persianas cerradas, o ambiente é revestido por uma rala penumbra – bem diferente da paisagem atrás de mim, no fundo da fotografia. Aqui faz dia de sol besuntado em cores. Deve ser domingo. Parece outono. Há cercas brancas e pradarias ao redor. Nuvens raiadas e pássaros. Sorrio.
Nessa situação, penso que só as lembranças podem projetar nossa presença em lugares nos quais já não estamos.
Neste outro porta-retratos estou sério. Visto roupas alinhadas e gravata. Ao fundo, uma estante abarrotada de livros falsos. Canudo na mão, gel nos cabelos. Fora daqui há um ambiente mais claro. Invadido por muita luz, na verdade. Também uma sala, mas com um par de sofás marcados pelo uso. Na parede de trás, uma janela de ripas aberta ao sol. Do alto da porta que dá para à cozinha descem cascatas de contas em forma de cortina. No canto da parede, um altarzinho eleva a miniatura em gesso de São Sebastião. Pingos de vela branca derretida no piso de cimento queimado. Estou em cima da televisão de 14”, de frente para o gato de louça na prateleira, que parece fitar eternamente meus olhos.
Acho que as lembranças nos multiplicam pelo mundo, ludibriando para quem nos quer bem a nossa ausência.
Já deste terceiro não consigo ver nada. Nem descrever quais formas e cores tem a paisagem na qual me congelaram. Tampouco os objetos do lado de fora. Não sorrio, nem estou sério, muito menos esboço uma face. Está escuro. De uma escuridão que permeia certos tipos de solidão e que costuma ocupar o vazio do esquecimento. Guardado (ou escondido) dentro de uma gaveta?
Torço para que as lâmpadas apenas estejam apagadas. Mas no fundo temo por alguém já ter perdido minhas lembranças.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com