Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Aos amigos Douglas Dias Vieira e Mayco Hélio
Nos acervos da memória coletiva da cidade há dois personagens carismáticos conhecidos somente por quem já passou dos 30 anos: os ariscos e bagunceiros macaquinhos do Gregório.
Há muito tempo, quando na rua Henrique Gripp Filho ainda havia os barracões de serviços automotivos da família do Seu Gregório Duarte, com posto de combustível, lava-jato, oficina mecânica e borracharia, um casal de macacos prego habitava uma jaula de vergalhões com 1,5 m de altura por 2 de largura. Eram exóticos animais de estimação criados publicamente num cativeiro à beira da calçada, perto das bombas de gasolina.
Foram trazidos por encomenda nos anos de 1980 pelos caminhoneiros que abasteciam no Posto Shell e permaneceram durante anos despertando a atenção de quem passava por ali.
Embora a presença daqueles dois primatas no meio da cidade nos parecesse estranho, sua ausência nos deixaria um furo na rotina, habituados que éramos às suas anarquias quando alguém os cumprimentava. É que já haviam aprendido a pedir comida ao abrirem as mãozinhas para fora das grades. Os transeuntes davam-lhes pipoca, banana, biscoito de maizena e ficavam encantados com a habilidade que tinham para desembrulharem uma bala igual a um menino. Não que passassem fome. Aliás, os Duarte sempre os trataram com atenção, muito embora nos dias de hoje esta cena curiosa fosse impraticável – não só devido às leis ambientais, mas principalmente pelo bom-senso que o tempo sempre nos traz.
Mas à época, mais por inocência do que maldade, ter os macaquinhos engaiolados na rua era uma verdadeira atração, a qual ninguém resistia atravessar a calçada para vê-los fazer graça. Porém, para os adultos, aproximar-se da jaula carecia de cautela, pois por mais urbanizados que fossem, ainda eram selvagens. Mas para nós – crianças – eles eram como dois hominídeos barulhentos que, se pudéssemos, levaríamos nos ombros para brincar nas divertidas e perigosas estruturas de madeira que tinham na Área de Lazer.
A verdade é que não eram lá muito dóceis. Ficar enclausurados em um cubo metálico cheirando a fruta azeda, expostos a um público que, ainda que muitos os respeitassem, outros o irritavam com gravetos e areia, vulneráveis a agressivos latidos de cães de rua durante a madrugada, devia mesmo ser uma tortura para eles. Só agora, muitos anos depois, ao lembrarmos de suas caretas irreverentes é que damos conta de que quando nos mostravam as presas não era porque sorriam, mas porque gritavam furiosos para que os deixássemos em paz.
Contudo, também havia ternura em seus miúdos olhos acastanhados, quando nos encaravam curiosos como se reconhecessem em nós o parentesco evoluído de um mesmo ancestral primitivo. Nestas ocasiões, suas minúsculas mãos se estendiam não para pedir comida, mas para nos tocar com carinho como quem abraça um amigo. Mas, por precaução – e um pouquinho de soberba humana – sempre nos afastávamos um passo.
Mesmo assim, já aconteceu mais de uma vez de algum moleque espevitado – que hoje é homem feito – ter tido abocanhada a ponta do dedo por um dos macacos. E sempre que a notícia espalhava, as mães nos proibiam de aproximar daqueles dois símios tão incrivelmente ferozes e simpáticos.
Até que um dia, quando a cidade acordou em uma distante manhã da década de 90, a jaula havia sido retirada do posto e levada para um sítio. Depois disso, aqueles bichinhos de pelo amarelado e olhos arregalados nunca mais foram vistos pelos garotos quando a aula terminava nem por quem os já considerava ilustres moradores de Espera Feliz.
E assim, apesar de sabermos que viveriam melhor no refúgio tranquilo da roça, ficou um vazio no centro da cidade sem termos por perto o barulho e a diversão de suas traquinagens.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com