Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Oba! Oi!

Conversávamos no Calçadão eu e mais dois amigos quando ele apareceu – pés descalços, roupas em trapos, rosto e mãos encardidos pelo abandono.

Publicado em 22/09/2023 - 13:15    |    Última atualização: 22/09/2023 - 13:17
 

Há quinze anos conheci um homem que vagava nas ruas. Era onze e meia da noite de uma sexta-feira de junho e o inverno pulverizava de branco a atmosfera da cidade. À porta dos bares, jovens de meia-idade partilhavam cigarros e solidão. Nas esquinas, cães úmidos reviravam lixeiras.

Conversávamos no Calçadão eu e mais dois amigos quando ele apareceu – pés descalços, roupas em trapos, rosto e mãos encardidos pelo abandono. Aproximou-se como quem quisesse atenção. Por um breve instante postou-se, sobrancelhas espantadas sobre os olhos em brasa, e disse com a ternura impávida dos desabrigados: Oba! Oi!

Retribuímos o cumprimento com um “boa noite” e aguardamos, com certa culpa, o pedido que sucede à abordagens como essas – uma moeda, um gole, uma prece.

Mas o pedido previsto não veio. Como também não veio nenhuma outra frase ainda que desconexa. Apenas um silêncio que se tornava mais constrangedor quanto mais ele nos encarava. Até que finalmente, depois de um ruidoso e primário grunhido, disse outra vez: Oba! Oi!

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Olhamo-nos os três como que tentando compreender a situação, extrair dele a necessidade que seu limitado vocabulário era incapaz de verbalizar, mas de nada adiantava interpelá-lo com perguntas. Ele apenas nos olhava, braços e um meio sorriso abertos, e repetia as duas únicas palavras que parecia conhecer: Oba! Oi!

Depois, talvez frustrado pela comunicação impossível, deu-nos as costas e seguiu seu caminho, desorientado pelo frio e pelos carros que passavam, exprimindo a quem encontrava aquele mesmo par de interjeições: Oba! Oi! Oba! Oi! Oba! Oi!…

*  *  *

Há poucos dias, saindo da papelaria precisei cruzar a Praça Dr. José Augusto, ao lado da prefeitura. Como o local se tornou o novo ponto dos descamisados e vencidos pelo álcool, estava ali o grupo de sempre – uns dormindo no gramado, outros falando sozinho, outros disputando um corote.

Um deles, que almoçava um pão seco com apetite dos séculos, estava de pé junto ao banco de concreto, com a atenção voltada para o vai e vem da calçada que sistematicamente o ignorava. Bastou um instante para reconhecê-lo: era o mesmo sujeito de quinze anos atrás, um pouco mais velho, mais grisalho, amparado agora por uma muleta devido à uma perna atrofiada. Mas guardava ainda as antigas feições, o mesmo ar de sobrevivente da guerra diária de morar nas ruas.

Imediatamente lembrei da cena, da dificuldade que tinha de se fazer entender. Se a desigualdade já faz da vida um jogo injusto, imagina aquele homem – um estrangeiro de seu próprio idioma – vivendo num mundo onde quem domina as palavras é quem faz as regras.

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Antes de atravessar a faixa olhei para ele, que me devolveu o aceno arqueado daquela distante e gelada noite de junho. Em seguida, como se também uma nesga de recordação lhe saltasse à memória, pronunciou com dignidade seu diminuto e expressivo cumprimento: Oba! Oi!

Só que desta vez pensei agir diferente, talvez me aproximar e puxar uma conversa. Mas como me faltariam palavras para compensar uma existência de atenção que foi lhe negada, foi ele quem se compadeceu de mim quando eu também lhe respondi apenas um “Oba! Oi!”.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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