Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
No início da pandemia, as notícias de que um novo vírus surgira no Oriente nos chegavam sem que déssemos muita atenção, porque sabíamos que entre nós e ele havia a distância de dois oceanos.
Em seguida, foram os chefes de estado europeus que acenderam alertas quando o vírus penetrou o Ocidente. Também não nos preocupamos, porque ainda havia pelo menos um continente separando a distância entre nós e eles.
Apenas semanas depois, ao serem registrados contágios desde o Brasil até o extremo norte das Américas é que demos conta de que algo inédito e assombroso acontecia no mundo, enquanto nós, alienados por nossas telas digitais, relutávamos em não acreditar.
Mas de repente – e de forma irreversível – nossa rotina foi drasticamente alterada. Governadores e Prefeitos baixavam Decretos de urgência, estabelecimentos comerciais fechavam indefinidamente suas portas, agentes e autoridades públicas de saúde asseveravam sobre os devidos cuidados, emissoras e sites divulgavam estatísticas da contaminação e o povo, confuso como se não houvesse um líder no combate à crise, roía unhas de incertezas quanto ao futuro da própria civilização.
Em Espera Feliz, vimos a fleuma das esquinas cotidianas ser alarmada por sirenes de polícia e alto-falantes, determinando o distanciamento social e que sempre lavássemos as mãos. Pois o vírus se alastrava exponencialmente de canto a canto do globo e a realidade brasileira – que há muito já nos parecia distópica – transformou-se ainda mais no enredo de um nebuloso filme de horror sem paralelos com a vida real. “Nada mais será como antes!”, bradavam profetas de redes sociais.
Para evitar o contágio, trancamo-nos em nossas casas e apartamentos, cerramos a cadeados janelas e cortinas, e só abríamos a porta – quando muito – para pôr o lixo para fora. Isolados mas esperançosos, iniciamos a quarentena como quem aguarda o estio para retomar as ruas. No entanto, quanto mais notícias chegavam, com contabilidades de vítimas e novos contaminados, mais nos confinávamos no temor dos espaços limitados de nossas salas e quartos.
Para driblar a insônia e o desespero, distraíamos com lives entre amigos e storyes alheios, com memes transformando em humor os nossos medos, com filmes e séries como se no interior das casas fosse um domingo eterno, com reparos adiados em gavetas e dobradiças de armário. Mesmo assim o tempo foi se tornando mais tedioso. E menos suportável. E menos proveitoso. E então desligamos TV’s e celulares. E nos desconectamos do exterior de nós mesmos no cárcere de nossos lares. E nos conformamos, esperando que um dia a pandemia passasse. E esperamos por meses. E esperamos por anos. Até que perdêssemos as contas para que não fosse preciso calcular o tempo que ainda havíamos de esperar.
Por isso, sob o abrigo perpétuo dos tetos e paredes, crianças cresceram e amadureceram, jovens se viram velhos quando faziam selfies, idosos tornaram-se cada vez mais idosos, pets deram luz à gerações de herdeiros, árvores frutíferas de quintal pereceram e a vida resumiu-se a uma sequência ilimitada de horas demarcadas pela solidão dos dias e o silêncio das noites melancólicas.
Até que no romper de uma aurora aleatória, motivado por um misto de fastio e coragem, alguém resolveu abrir a porta. Os vizinhos, ansiosos por descobrir em que se transformara o mundo lá fora, também abdicaram das teias fossilizadas do confinamento e saíram de suas casas, maravilhados com os raios de sol que, por muitos anos, deixou de aquecer o cotidiano. A quarentena humana estava enfim terminada.
Mas acontece que àquela altura, a dinâmica selvagem da natureza já havia retomado para si o espaço desabitado das cidades, desde a rústica e tímida Espera Feliz às regiões mais sofisticadas da Escandinávia, com flores silvestres colorindo sobre os telhados, cipós retorcidos debruçando-se dos terraços, orquídeas florescendo na rachadura das calçadas e bromélias povoaram carcaças dos antigos carros estacionados. Por todo lado, lagos se formaram sobre a grade dos bueiros, cogumelos engendraram na umidade dos muros, florestas cresceram no pavimento erodido das praças e o concreto cinza da paisagem urbana cobriu-se de verde musgo numa espessa camada de substrato vegetal. Abandonadas, as cidades reconstituíram ao mundo o aspecto primitivo que tinha anterior à nossa ancestral chegada.
Contudo, bastou que se desentocassem afoitos os homos sapiens de suas casas para que a fauna de toda espécie instalada nas ruas, avenidas e pontes batesse em retirada: refugiaram-se tatus, onças e capivaras; isolaram-se macacos, preguiças e mãos-peladas; revoaram-se tucanos, gaviões e canários; desapareceram libélulas, abelhas e borboletas no meio do nada… Ao ecossistema dos animais silvícolas, uma atroz quarentena surgia.
Pois sabiam que uma devastadora pandemia os ameaçava: a do vírus humano contaminando outra vez a extinção do planeta.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com