Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

O vírus humano

Algo inédito e assombroso acontecia no mundo, enquanto nós, alienados por nossas telas digitais, relutávamos em não acreditar.

Publicado em 06/04/2020 - 14:04    |    Última atualização: 06/04/2020 - 14:04
 

No início da pandemia, as notícias de que um novo vírus surgira no Oriente nos chegavam sem que déssemos muita atenção, porque sabíamos que entre nós e ele havia a distância de dois oceanos.

Em seguida, foram os chefes de estado europeus que acenderam alertas quando o vírus penetrou o Ocidente. Também não nos preocupamos, porque ainda havia pelo menos um continente separando a distância entre nós e eles.

Apenas semanas depois, ao serem registrados contágios desde o Brasil até o extremo norte das Américas é que demos conta de que algo inédito e assombroso acontecia no mundo, enquanto nós, alienados por nossas telas digitais, relutávamos em não acreditar.

Mas de repente – e de forma irreversível – nossa rotina foi drasticamente alterada. Governadores e Prefeitos baixavam Decretos de urgência, estabelecimentos comerciais fechavam indefinidamente suas portas, agentes e autoridades públicas de saúde asseveravam sobre os devidos cuidados, emissoras e sites divulgavam estatísticas da contaminação e o povo, confuso como se não houvesse um líder no combate à crise, roía unhas de incertezas quanto ao futuro da própria civilização.

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Em Espera Feliz, vimos a fleuma das esquinas cotidianas ser alarmada por sirenes de polícia e alto-falantes, determinando o distanciamento social e que sempre lavássemos as mãos. Pois o vírus se alastrava exponencialmente de canto a canto do globo e a realidade brasileira – que há muito já nos parecia distópica – transformou-se ainda mais no enredo de um nebuloso filme de horror sem paralelos com a vida real. “Nada mais será como antes!”, bradavam profetas de redes sociais.

Para evitar o contágio, trancamo-nos em nossas casas e apartamentos, cerramos a cadeados janelas e cortinas, e só abríamos a porta – quando muito – para pôr o lixo para fora. Isolados mas esperançosos, iniciamos a quarentena como quem aguarda o estio para retomar as ruas. No entanto, quanto mais notícias chegavam, com contabilidades de vítimas e novos contaminados, mais nos confinávamos no temor dos espaços limitados de nossas salas e quartos.

Para driblar a insônia e o desespero, distraíamos com lives entre amigos e storyes alheios, com memes transformando em humor os nossos medos, com filmes e séries como se no interior das casas fosse um domingo eterno, com reparos adiados em gavetas e dobradiças de armário. Mesmo assim o tempo foi se tornando mais tedioso. E menos suportável. E menos proveitoso. E então desligamos TV’s e celulares. E nos desconectamos do exterior de nós mesmos no cárcere de nossos lares. E nos conformamos, esperando que um dia a pandemia passasse. E esperamos por meses. E esperamos por anos. Até que perdêssemos as contas para que não fosse preciso calcular o tempo que ainda havíamos de esperar.

Por isso, sob o abrigo perpétuo dos tetos e paredes, crianças cresceram e amadureceram, jovens se viram velhos quando faziam selfies, idosos tornaram-se cada vez mais idosos, pets deram luz à gerações de herdeiros, árvores frutíferas de quintal pereceram e a vida resumiu-se a uma sequência ilimitada de horas demarcadas pela solidão dos dias e o silêncio das noites melancólicas.

Até que no romper de uma aurora aleatória, motivado por um misto de fastio e coragem, alguém resolveu abrir a porta. Os vizinhos, ansiosos por descobrir em que se transformara o mundo lá fora, também abdicaram das teias fossilizadas do confinamento e saíram de suas casas, maravilhados com os raios de sol que, por muitos anos, deixou de aquecer o cotidiano. A quarentena humana estava enfim terminada.

Mas acontece que àquela altura, a dinâmica selvagem da natureza já havia retomado para si o espaço desabitado das cidades, desde a rústica e tímida Espera Feliz às regiões mais sofisticadas da Escandinávia, com flores silvestres colorindo sobre os telhados, cipós retorcidos debruçando-se dos terraços, orquídeas florescendo na rachadura das calçadas e bromélias povoaram carcaças dos antigos carros estacionados. Por todo lado, lagos se formaram sobre a grade dos bueiros, cogumelos engendraram na umidade dos muros, florestas cresceram no pavimento erodido das praças e o concreto cinza da paisagem urbana cobriu-se de verde musgo numa espessa camada de substrato vegetal. Abandonadas, as cidades reconstituíram ao mundo o aspecto primitivo que tinha anterior à nossa ancestral chegada.

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Contudo, bastou que se desentocassem afoitos os homos sapiens de suas casas para que a fauna de toda espécie instalada nas ruas, avenidas e pontes batesse em retirada: refugiaram-se tatus, onças e capivaras; isolaram-se macacos, preguiças e mãos-peladas; revoaram-se tucanos, gaviões e canários; desapareceram libélulas, abelhas e borboletas no meio do nada… Ao ecossistema dos animais silvícolas, uma atroz quarentena surgia.

Pois sabiam que uma devastadora pandemia os ameaçava: a do vírus humano contaminando outra vez a extinção do planeta.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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