Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
* Ouça a narração da crônica clicando no vídeo abaixo:
Se nos acostumamos ao trinado do sino feito uma ave metálica na torre da igreja é porque toda cidadezinha tem um. As cidades grandes também têm, mas no interior, com pouca distração de trânsito, buzina e gente é onde os badalos ficam mais evidentes.
Por isso, acostumamo-nos ao sino desde sempre, já que seu zunido agudo parece reverberar muito antes de nós, diluído no alarido dos dias, dos meses, dos anos…
Acostumamo-nos tanto ao sino que às vezes nem notamos seu retinir, como também não notamos os galos, as maritacas, os canários. Mas se por qualquer motivo ele não toca, imediatamente notamos sua falta, de tão incluído que o sino está em nossos tímpanos.
Houve uma época remota em que o sino, além da missão sagrada de convocar missas, quermesses e Ângelus das seis da tarde, era também um mensageiro do tempo, informando as horas como se ponteiros invisíveis ressoassem de cada toque.
Mas hoje, quando parece ter se tornado obsoleto para esse fim, o sino é visto como mero artefato de museu na paisagem sonora da cidade – apenas para alguns, quero dizer. Porque para a maioria, com o resplandecer de meia em meia hora do seu ritmado hábito de batidas, o sino chega a ser um personagem, que se envereda por todas as ruas e becos, adentrando varandas, janelas e portas, e nos chega em ondas pelas correntes de ar com sua voz de bronze cantando entre os silêncios: blém-blém… blém-blém… blém-blém…
Isso faz lembrar John Donne, quando em 1624 escreveu “nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” Só que diferente dos versos do poeta inglês, o nosso sino não dobra para anunciar a morte, e sim a vida. A vida dos que se encontram na praça, dos que caminham apressados na calçada, dos que se amam à meia-luz, dos que acordam para o dia, dos que ressonam de madrugada, e de todos aqueles que se acostumaram a ouvir de longe a presença constante de suas badaladas.
Porque o toque do sino da Matriz é uma espécie de batimento cardíaco na pulsação diária do coração da cidade.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com