Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Quem vive (ou já viveu) no interior do país sabe da experiência de se comer frutas direto do pé. Dos passeios na roça aos domingos ou mesmo fazendo sombra à porta da cozinha, sempre há laranjeiras, pessegueiros ou parreiras de maracujá colorindo de verde marinho a clorofila de nossas memórias.
Durante a infância, na primeira metade dos anos de 1990, a palavra “feira” tinha um conceito vago e distante para mim. Pois para quem passava os dias brincando na poeira e correndo solto feito um bicho silvestre, comprar frutas só se fossem as que o clima da região não cultivasse: maçã, pera, abacaxi…
No Bairro João do Roque, cenário onde fui criado e museu das minhas remotas lembranças, em quase todos os quintais era comum se ter um pomar. Naquele tempo de banquinhos na calçada e portas destrancadas, os muros praticamente não existiam, permitindo-nos na hora do pique atalhar pela vizinhança até a Rua de Baixo – assim como às ruas transversais a que eu morava. Nestas áreas sem fronteiras, além de caminhos para carrinhos de terra, furos no chão para bolinhas de gude e cacos de tijolo para pular maré, a estrutura vegetal das árvores era nossa outra diversão. Por isso que de galho em galho fazíamos das frutas nosso lanche da tarde num sistema de feiras-livres ao estender das mãos.
No mês de março tínhamos as goiabas. Eram da vermelha e da branca. Tirávamos as carocas com dentadas, certificávamos no miolo a ausência de bicho e comíamos ali mesmo empoleirados nas forquilhas. Assim também fazíamos com as mangas. Em cada quintal uma qualidade diferente: manga espada, coquinho, rosa. Depois, para lavarmos a cara lambuzada recorríamos à torneira da garagem de alguém ou à água do tanque da varanda mais próxima.
Na minha casa tinha um pé de araçá, perto do padrão de luz. Não recordo em qual época dava, só sei que antes mesmo que lhe adocicasse o azedume, comíamos quase todas, sem madurar. Já nos fundos da casa ao lado tinha um pé de ameixa amarela. Balançávamos os cachos com uma vara de bambu e aparávamos com a camisa as que caíam. No outro quintal tinha uma amoreira. Sua galhada esplêndida de folhagens picotadas, de tão carregada curvava-se rente ao chão de areia, onde galinhas ciscavam sob o sol. Após a catada, dedos, beiços e roupas ficavam permeados por uma nódoa arroxeada.
Embora tais searas nos fossem de livre acesso, não raro tomávamos galope dos vizinhos ranzinzas – “racha fora daqui, peste!”, era como gentilmente nos expulsavam. Um dia, enquanto pegávamos mexerica no pomar da Dona Nita, o seu marido, um severo senhor que relampeja sob o chapéu de palha, saiu da casa titubeando um cinto e nos botou para fugir como jamais havíamos corrido – escapamos da correada, mas o sabão até hoje assombra meus pensamentos.
Outro recanto que havia no Bairro do Roque e que hoje, infelizmente, não há sequer resquícios eram as frondosas jabuticabeiras da Fazenda. Tratava-se de um lugar afastado das casas, ao pé da serra, cuja paisagem mais parecia um quadro congelado do passado: um casarão de esteios brutos de braúna, com alpendre florido e telhas de barro, assoalhado por tábuas corridas e respeitáveis janelas de madeira na fachada. Nos arredores, umas vinte jabuticabeiras igualmente antigas que fervilhavam de gente da cidade inteira – o Éden dos quintais frutíferos. Seu João e Dona Mariazinha recebiam-nos com sorrisos e nós, moleques descalços entre patos e ganços, escalávamos as gigantes copas a sete metros do chão, a procura das esferas mais graúdas – sabiás, canários e juritis confundiam-se conosco, pássaros sem asas entre galhos e folhas.
Muitos anos se passaram desde então. Muros aprisionaram em quadrados os quintais do bairro, furos de bolinha de gude se fecharam sob o chão pavimentado e o casarão centenário da Fazenda foi tragado para sempre pela urbanização. Apesar do tempo, tenho estas cenas permanentes na lembrança feito fotografias coloridas de ainda há pouco.
Acho que por isso, quando penso no sabor das jabuticabas é como se caminhasse por pomares em pleno deserto da saudade.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com