Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

O jogo que não aconteceu

Pelo nosso bem, na supremacia do futebol alemão não há resquícios da crueldade de qualquer herança Nazista.

Publicado em 11/07/2014 - 16:32    |    Última atualização: 11/07/2014 - 16:32
 

bandeiraFiasco? Tragédia? Vexame? Pesadelo? Vergonha? Desastre? Pane? Não houve e não há idioma ou dialeto com vocabulário tão preciso que defina o arroubo tão emblemático daquela partida de 8 de julho de 2014 contra a Alemanha.

O fato é que o ocorrido provocou em toda a nação o nascimento de um sentimento estranho e inominável. Minha teoria é a de que durante os noventa minutos de jogo não sabíamos a que sentimento nos apegar, tamanhas eram a surpresa e perplexidade diante do desempenho atípico da Seleção Brasileira. Nem raiva, nem frustração, nem pena. Nada de nada.

De longe aquele foi o pior jogo desta e das últimas copas que se tem notícia desde 1994. Nem o enfadonho 0 x 0 entre Irã e Nigéria na primeira fase foi tão destesudo de se ver quanto este surreal 7 x 1 que a Alemanha pregou na história do nosso futebol. Até o árbitro recebeu sem trabalhar.

No bar em que víamos o jogo, tivemos todos a apreensão do início da partida até o primeiro gol do adversário substituída por uma euforia confusa e etérea a partir do segundo gol em diante. Tanto que depois dos trinta minutos de jogo olhávamos para a TV como quem assiste a um show de piadas mal contadas, no qual os piadistas e a plateia se perdiam numa pegajosa e desagradável massa de constrangimento. Ao final do primeiro tempo nos sentíamos apátridas e desnudos de identidade, solicitando em preces imaginárias que o Felipão recolhesse a bola embaixo do braço e declarasse ao árbitro o final da partida. Mas não aconteceu, e tivemos que retornar a campo para um desnecessário segundo tempo.

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Algo tão inacreditável acontecia naquele fim de tarde no Mineirão que os próprios adversários, tanto ou mais estarrecidos que nós torcedores da casa, sentiram-se extremamente desconfortáveis com a situação e recuaram, já que fazer gols no Brasil se tornara lugar comum e uma goleada de 10 ou 12 soaria desrespeitoso à Seleção Canarinho, além de manchar de uma arrogância estúpida a campanha tão bela e honesta que a Alemanha vem fazendo desde o começo da Copa. Pelo nosso bem, na supremacia do futebol alemão não há resquícios da crueldade de qualquer herança Nazista.

Quando tudo acabou, quase não fazíamos ideia de quem era o autor do nosso golzinho de honra, quão insignificante representava para todos. Restava-nos apenas aplaudir, meio que por impulso, o desenho tático e o conjunto da obra assinada pela ótima equipe alemã naquela tarde de inverno no Mineirão (que já atende pelo nome de Mineirazo).

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Bom é que o episódio jogou merda no ar condicionado da CBF e suscitou um convés de questões acerca do atual futebol brasileiro. O último jogo foi o final do estopim que vinha queimando desde a Copa de 2006 e que agora explodiu uma dinamite de revelações sobre o nosso mais amado esporte – a principal delas: da tradição do nosso futebol, sobra-nos apenas a bonita história contada por nossos pais e avós.

Os torcedores já sabem (como já sabiam desde sempre) que é urgente uma renovação. Mas a CBF é quem é o órgão gerador dessa mudança. É preciso uma transformação no modo como fazemos futebol hoje, acompanhando a evolução do esporte pelo mundo e nos desprendendo de fórmulas obsoletas só praticáveis até os tempos do Tetra. Transformação esta que deve pontuar-se ao mesmo “futebol arte” – verdadeira marca dos nossos atletas – mas deixando bastante claro que a seleção de hoje em dia deve jogar bola com as próprias pernas, e não com os pés do Pelé, do Garrincha, do Zico, do Romário, do Rivaldo. Todos e muitos outros já contribuíram. Agora é nossa vez de criarmos e manter o legado.

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Em vista da desorganização, do desequilíbrio tático (e emocional), da indisciplina, da falta de foco, de liderança e, principalmente, da falta de planejamento etc., etc. demonstrados na nossa fatídica semifinal, é exagerado dizer que aquele jogo não passa de uma metáfora estapafúrdia e nonsense do nosso atual rançoso cenário da política e gestão pública do Brasil? Uma atabalhoada comédia de humor pastelão da qual os palhaços (o povo) são quem riem das trapalhadas? Uma vitrine mundial na qual a seleção e comissão técnica eram o retrato dos nossos políticos dentro de campo?

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Na suma da Copa do Mundo de 2014, por muito tempo ficará em evidência (talvez até mais que o campeão que veremos no domingo da final) nossa derrota sem precedentes e sem pé nem cabeça, esse jogo destoante de tudo que nós e o mundo já vimos em termos de futebol. Dessa partida da qual a Seleção Brasileira saiu desencantada, desiludida e desmoralizada, por muitos anos lembraremos como um jogo que não aconteceu, uma fantasia de uma Copa do Mundo em que o Brasil deixou passar a melhor oportunidade de dar o seu show. Mas o jogo aconteceu, e pelo visto foi bem mais real do que nos pareceu.

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P.S.: O “pesadelo” é saber que ainda pode ser pior: escrevo a crônica numa quinta-feira, portanto nem cogito a possibilidade de o Brasil perder o terceiro lugar para a Holanda no sábado e, para acender a última vela sobre a cova, ver a Argentina ser tricampeã dentro do Maracanã no próximo domingo.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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