Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
(A Lucimar Bento de Assis, o “Arconada” – ex-goleiro dos clássicos Estrela e Santa Luzia)
Há no futebol uma posição de papel fundamental e quase sempre ofuscada pelos holofotes do ataque: trata-se do goleiro.
Ainda que sejam os gols que pontuem no placar, o que nos passa despercebido é que da soma de cada defesa empreendida subtrai-se um ponto a menos para a equipe adversária. Portanto, o desempenho do guarda-redes é também protagonista no resultado de um jogo.
Geralmente uma posição desprezada desde a infância nos campinhos de várzea, são atribuídas equivocadamente ao goleiro a responsabilidade das derrotas e a fama de posto entediante. Por ser o último homem – e por exigência de sua própria tarefa – ele é o único jogador com menor posse de bola e, em teoria, o que menos se diverte em campo.
Mas é que o comprometimento de seu trabalho não admite a irreverência de dribles, chapéus e canetadas, pois qualquer faísca de distração acarreta a irreversível falha de se levar um gol. Daí a seriedade deste cargo de tão alta hierarquia: é por ele que se ganha ou se perde qualquer partida.
Desta forma, ser goleiro não é o que sobra para quem não tem talento nas pernas. É para quem nasce com vocação e habilidade para defender quando preciso, mas também para atacar quando necessário. É fazer valer com dignidade seu direito exclusivo de se usar as mãos, esticando os braços como o bote elástico de um lagarto ou mergulhando rasante como na acrobacia de um gavião.
Há também que se ter força bruta nos gestos. Pois, no gramado, ser goleiro é ocupar o lugar dos tanques blindados numa batalha, reprimindo por 90 minutos um exército de chuteiras mirando sua direção. Vestir a camisa número 1 requer a decência dos que não medram no paredão de fuzilamento, seja diante de um curvo tiro-livre direto ou de um seco e brutal chute da marca do pênalti.
Contudo, as pesadas mãos que espalmam a bola com a violência de um canhão também devem ser leves como quem rabisca desenhos entre o ar e o chão. Pois, defender o cobiçado retângulo de 7,32 metros exige dos movimentos a precisão de quem pinta um quadro que não permite retoques. A beleza contida numa defesa de última hora é algo que nenhum gol de craque seria capaz de superar. Porque guardar as traves é como escrever poemas com a ponta das luvas resvalando a bola sobre o travessão.
Apesar da autoridade de seu cargo, ser goleiro é também conformar-se à ingratidão. Porque são breves os aplausos para suas muitas glórias, mas imperdoáveis as consequências de seus raros erros, tendo de suportar eternamente no currículo os infortúnios de um frango repentino ou da indefensável penalidade máxima em uma decisão.
Mas há que se lembrar que ele – o goleiro – é quem sempre remendará os furos de uma zaga mal posicionada, quem esticar-se-á todos os milímetros de ossos quando a categoria de um centroavante encobrir a barreira e quem rebaterá com um soco na grande área os riscos de uma agressiva batida de escanteio. E só por esse esforço sobre-humano é o goleiro quem mereceria marcar pontos, como se cada defesa valesse o mesmo que o gol feito por seus companheiros.
Ao contrário, isolado por sua humilde condição de quem joga com as mãos o arqueiro assiste, à distância, os méritos dos outros dez que só podem jogar com os pés, comemorando os gols que, muitas vezes, foi ele próprio quem possibilitou com seu tiro de meta – e, quase anônimo do outro lado do gramado, ele vibra a vitória como um herói solitário.
Mas, justiça seja feita, há sim goleiros que marcaram a história, como o uruguaio Muslera nas quartas de final de 2010, o italiano Buffon na conquista de 2006, o alemão Oliver Khan na final do penta de 2002, o colombiano Higuita com sua performance de escorpião em 98 e, claro, o brasileiro Taffarel – nosso Pelé dos goleiros! – na defesa dos pênaltis no tetra de 1994.
Que em 2022 no Qatar, Alysson, o goleiro titular da nossa seleção, também faça por gravar seu nome nesta lista de homens santos e nos traga a taça do hexa amparada na palma de suas mãos.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com