Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Notas camponesas: as comunidades anônimas no Vale do Rio São João

São pequenos povoados e propriedades rurais que muitos de nós – os que moramos na cidade – desconhecemos.

Publicado em 26/11/2021 - 13:53    |    Última atualização: 26/11/2021 - 13:53
 

O São João é um dos braços hídricos do Caparaó mineiro cuja foz, ao se juntar com o Rio Preto na divisa dos Três Estados, dá origem ao Itabapoana, uma artéria de águas turvas que conecta a serra ao Oceano Atlântico.

De suas nascentes, nas gargantas montanhosas do Alto Taboão, até às primeiras casas do perímetro urbano de Espera Feliz há pelo menos 30 quilômetros de curvas e remansos que o resguardam da imundície que despejamos em seu leito diariamente. É neste trecho, entre plantações de cultivo e corredores de mata nativa, que se encontra a parte mais bela de todo o seu curso. Não só por seu trajeto sinuoso que faz lembrar uma serpente de vidro nem pela paisagem que ele próprio forjou ao longo das eras, mas pela cultura de milhares de moradores que habitam suas margens há várias gerações.

Ao contrário do que ocorre no Vale do Rio Preto, onde pousadas, cafeterias e restaurantes sofisticados vêm promovendo mudanças com a expansão turística na vertente leste da cordilheira, aqui os assentamentos humanos preservam até hoje sua essência camponesa, isolados numa atmosfera bucólica ainda não maculada pela chegada do asfalto.

São pequenos povoados e propriedades rurais que muitos de nós – os que moramos na cidade – desconhecemos. Basta seguir rio acima por um sistema de estradas vicinais para se ter contato com diversas comunidades anônimas onde o estilo de vida e o ritmo das horas parecem os mesmos dos primeiros colonos. Para quem vem de fora é como adentrar um território deslocado no tempo e no espaço.

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1.

A primeira delas é São Sebastião da Barra, uma vila plantada na margem ocidental do rio a cinco quilômetros do centro de Espera Feliz. Entre suas pouco mais de cem casas distribuídas ao longo de uma única rua é possível avistar sinais que remetem à sua fundação, datada de 1850 – como o cemitério com lápides dilaceradas, o sobrado da Fazenda São Francisco de Assis e o casarão da Fazenda Águas Claras, onde seus esteios de braúna e vultos de assombração de quinze décadas atrás são vestígios de seu passado distante.

Na parte central do povoado, a centenária igrejinha se destaca no alto de uma elevação gramada onde uma geométrica praça de cimento com postes coloniais e um coreto de alvenaria transmitem a impressão de cena de novela.

Como a maioria dos residentes é composta por lavradores que trabalham de sol a sol, é raro ver alguém transitando depois das oito da noite, quando as portas da mercearia de secos & molhados e dos dois bares com sinuca já se encontram fechadas.

Infelizmente, a despeito de sua real importância, muitos de nós nem fazemos ideia de que São Sebastião da Barra é o nosso principal centro histórico, já que foi ali o embrião que principiou a cidade, há quase dois séculos.

2.

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Mais adiante, a partir da encruzilhada depois da antiga saibreira chega-se ao Boiadeiro, um diminuto assentamento agrícola com meia-dúzia de casas entre o rio e a estrada.

A composição do lugar, que reflete a calmaria do universo campestre, tem algo de pintura neoclássica. De um lado, estende-se uma colina verde-veludo onde bois, cavalos e cabritos ruminam a pastagem. De outro, uma cinzenta e vertical pedreira ergue-se a oitenta metros do chão como um rasgo mineral cicatrizado no morro. E depois das últimas casas, uma alameda de eucaliptos imprime sombras vibrantes ao longo do caminho.

Por ali, quando não há motocicletas subindo as lavouras ou o motor das colheitadeiras derriçando café é possível escutar o alarido da tarde reverberando no silêncio perpétuo da roça: cigarras no matagal, latidos de cachorro, cantos de galo, crianças no terreiro, comadres na janela, chiados de rádio.

À primeira vista, esse ambiente onde parece ser sempre domingo até soaria monótono para quem vive ali. Mas para os que são da cidade é uma forma de personificação da paz.

3.

A estrada continua na encosta margeando o precipício. Lá embaixo, o São João corre manso no meio da mata, em sentido oposto. Depois do butiquim encardido de poeira uma bifurcação conduz a uma íngreme subida, e na virada de lá, distante um quilômetro do rio, desponta-se Pedra Negra, uma das comunidades mais graciosas da região.

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O lugar é um grotão remoto fortificado de morros por todos os lados. Entre lavouras e pastos ondulados, uma estrada de terra vermelha desliza até o centro do vale onde cerca de trinta casas dispersas à sombra de espatódeas floridas abrigam meeiros e agricultores familiares. Na frente de uma delas – a mais suntuosa de todas, com portas e janelas monumentais – há um imenso terreirão de concreto onde homens e mulheres passam parte do ano secando grãos de café. E acima de tudo e de todos, a capela de São Pedro é uma espécie de farol divino fincado no topo de uma colina.

Embora hoje seja uma pacata aldeia à deriva dos mapas, no passado Pedra Negra testemunhou o périplo de comitivas e mercadores quando serviu de rota aos tropeiros. Ou quando, cinquenta anos atrás, centenas de operários com picaretas e enxadões escavavam lavras de mica e caulim para as extintas companhias mineradoras.

Desse tempo auspicioso, restou intacto a exuberante paisagem que dá nome ao lugar, com a colossal pedreira revestida por um jardim selvagem de musgos, líquens e bromélias feito uma carcaça pré-histórica fossilizada acima dos telhados e chaminés.

Por isso, ao conhecer Pedra Negra é impossível não vislumbrar a ideia: se um hotel-fazenda fosse construído ali, as reservas demandariam um ano de antecedência.

4.

De volta ao itinerário do rio, uma diversidade de entroncamentos, pontes e encruzilhadas conduz à comunidades ainda mais anônimas ao longo das margens.

São lugares cujos nomes de origem desconhecida remetem à denominação de estreitos cursos d’água que afluem no São João: Córrego da Soledade, Córrego do Cruzeiro, Córrego da Ponte dos Macacos, Córrego da Prata. Não chegam a compor vilas, pois são esparsas casinhas de telha e paredes caiadas no meio do cafezal em contraste com outras mais robustas e ornamentadas numa clara segregação entre patrões e empregados.

De quando em quando, para além do arame farpado avista-se açudes espelhando o céu na superfície plana das várzeas e pés de mexerica ponkan colorindo pomares ao lado dos currais. Dependendo da hora, tem-se o olfato invadido pelo tempero de janta pronta, com o aroma de carne de lata e couve refogada difuso ao fumo do fogão a lenha.

A julgar pelo fluxo de ciclistas e lavradores que se cumprimentam pelo caminho, percebe-se que o lugar é campo de trabalho árduo para uns, enquanto que para outros é um fascinante roteiro de passeio.

5.

Já li que os desbravadores batizavam os locais conforme o dia de um santo. Depois de erguerem uma cruz para abençoar a terra e plantarem suas primeiras roças, surgia então um pequeno povoado. Assim deve ter nascido São Gonçalo, uma vila campesina localizada a vinte quilômetros da cidade.

Embora tão antiga quanto São Sebastião da Barra, o lugarejo é bem menor e entre as poucas casas de alvenaria moderna, que substituíram as construções originais, há hoje uma escola, uma mercearia e uma padaria, funcionando como um importante ponto de apoio e abastecimento à boa parte da população rural.

De sua história também não existem muitos registros a não ser os relatos de memória dos moradores locais que, se não todos pelo menos a maioria, trazem na certidão de nascimento os sobrenomes das duas famílias que chegaram ali primeiro: os Silvestre e os Nogueira.

São Gonçalo, assim como suas vizinhas Boa Esperança, Ventania, Escuridão e São João da Farinha são comunidades com características peculiares. É como se a rodovia MG-111, que separa o extremo leste do restante do município, demarcasse uma fronteira cultural entre os que vivem no Vale do Rio São João: do asfalto para lá, há mais influência de Divino e Luisburgo do que de Espera Feliz, devido a proximidade com essas duas cidades.

(CRÉDITO: EDIMILSON G. CRUZ)

6.

E essa disparidade se amplia à medida que subimos o vale onde o São João, afunilado pela interseção dos morros, aparenta mais a largura de um córrego do que de rio.

Dali para frente, uma mixórdia de estradas, cruzamentos, atalhos e desvios faz do local uma verdadeira zona labiríntica, com entradas e saídas incertas desembocando em pelo menos quatro municípios diferentes – o que explicaria a recorrência de roubos e furtos naquela região, que acaba servindo de rota para malfeitores vindos de longe.

Por outro lado, é também nesta altura que se pressente a atmosfera mais mítica de toda a extensão do vale, como se a paisagem natural imprimisse no lugar uma aura de lenda e mistério. Sua geografia é uma cadeia de montanhas que se estende do Córrego da Gameleira – nas cercanias de Manhuaçu – à Serra do Papagaio, com picos e escarpas rochosas próximos dos 2.000 metros de altitude onde matas virgens divisando com fazendas ocultam segredos que desafiam a compreensão humana.

Como é o caso do Salão de Pedras, uma gruta com duzentos metros quadrados abaixo de uma rocha de quinhentas toneladas no fundo de um barranco. Camuflada no meio das lavouras, acredita-se que, no passado, a caverna foi morada de homens primitivos e, posteriormente, rancho de caçadores que se arriscavam nas profundezas da serra.

Próximo dali, na comunidade de São João da Farinha, está a Pedra Móvel, uma estrutura megalítica em que duas rochas sobrepostas se equilibram transversalmente no solo pantanoso do brejo. Apesar do peso descomunal, é possível mover o bloco superior aplicando apenas a força de um braço, e desde que foi descoberta ninguém conseguiu explicar suas origens: se foi construída para rituais indígenas, se resulta da ação geológica de milhões de anos ou se é obra dos lendários gigantes antediluvianos.

Já do outro lado do vale, suspensa no meio da floresta das montanhas do Grumarim avista-se o imponente Jequitibá-Rosa, uma árvore da espécie Cariniana Legalis cujas dimensões chegam a cinquenta metros de altura e dezesseis de circunferência. Classificada como um dos organismos vivos mais antigos da Terra, a planta que tem cerca de dez séculos de idade é um verdadeiro tesouro arqueológico, uma frondosa testemunha ocular da memória das Américas.

7.

Por último chega-se a Taboão, um minúsculo arraial montanhês onde o frio no verão e a neblina na primavera demarcam um microclima divergente de qualquer outro lugar.

Localizada a 1.000 metros de altitude, a comunidade se estabeleceu em um dos pontos mais extremos da região, praticamente isolada pela distância e por sua íngreme e escorregadia estrada de acesso. Talvez por isso – e também por ser o berço de antigas famílias –, ainda mantém tradições já desvanecidas em outros povoados, como a reza de novenas, o ofício de ponto-cruz e crochê, a confecção de doces artesanais, a culinária à base de gordura de porco e o cultivo de hortaliças não convencionais.

Mas é para além do território domesticado por fazendeiros e lavradores que se encontra a maior riqueza do local. A Área de Preservação Ambiental do Alto Taboão é um espaço verde com 2.450 hectares de floresta primária que abriga civilizações inteiras de fauna e flora nativas da Mata Atlântica. É como se ali uma fatia do mundo mantivesse a mesma configuração de 10.000 anos atrás, inalterada pelo nocivo progresso humano.

E talvez seja por essa conservação – muito mais pela barreira natural das montanhas do que pela consciência adquirida – que o Vale do Rio São João resiste à passagem do tempo. Pois suas nascentes, além de conectarem Espera Feliz ao litoral, mantêm vivo o fluxo de nossa história na lembrança ancestral das águas que o rio conduz desde que chegamos aqui.

*  *  *

(PEDRA NEGRA)
( FAZENDO S. FRANCISCO DE ASSIS – SÃO SEBASTIÃO DA BARRA)
(JEQUITIBÁ ROSA – GRUMARIM)
(SÃO SEBASTIÃO DA BARRA)
(CÓRREGO DA PRATA)
(FAZENDA ÁGUAS CLARAS – SÃO SEBASTIÃO DA BARRA)

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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