Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Das palavras diferentes que lemos e ouvimos por aí, muitos são seus motivos por quais nos impressionamos: por sua beleza gráfica e sonora, por sua feiura ou estranheza também gráfica e sonora, ou simplesmente por parecerem não fazer sentido algum.
Geralmente são termos recorrentes em obras literárias antigas, em manuais de jargões profissionais como a medicina e o direito ou pertencentes ao inventário rebuscado da norma culta do Português Padrão. Muitas delas, embora ainda conste registros no idioma atual, já caíram em desuso pelo desgaste do tempo.
Desta forma, por serem infrequentes no cotidiano, raramente as empregamos – ou por desconhecermos a precisão de seus significados ou por abrirmos mão de uma pretensa polidez na elaboração das frases. Assim, tais expressões assumem, para a linguagem de hábito geral, características de objetos raros, como artefatos de relíquia que nos servem mais para contemplação decorativa do que para uso prático.
Por isso, inauguro abaixo meu pequeno “Museu de Palavras”, com vocábulos selecionados a dedo por seus aspectos peculiaridades.
As palavras do primeiro rol (as belas), por nos soarem agradáveis à escrita ou à fala, as apreciamos simplesmente por ser o que são, ainda que sem entendê-las. “Alumbramento” é uma delas. Em cinco sílabas que recheiam de harmonia toda a cavidade da boca, seu uso se refere à inspiração, uma ideia divina que se nos revela, um estado puro de encantamento ante às descobertas sobre os mistérios da vida e do universo. Uma outra é “vórtice”, que apesar da proparoxítona imprimir um peso dramático à sua pronúncia, há nela um delicado matiz poético. Significa movimentos concêntricos e giratórios de um fluido, como o do vento na mecânica do redemoinho ou a água que se esvai pelo ralo da pia. Assim, desencadeia-se um vórtice tanto na fúria destruidora de um furacão quanto numa xícara de café quando se mexe o açúcar. Nesta seção também cabem outras que não carecem de dicionários para que sejam graciosas: “salutar”, “telúrio”, “combalido”, “efêmero”, “alforje”, “diáfano”, “pusilânime”.
Já as palavras do segundo escalão (as feias), independente da semântica que comportam, seu arcabouço linguístico por si só é áspero à voz e aos ouvidos. “Obséquio”, por exemplo. Apesar de toda a dignidade que traz no âmago de sua acepção – há gesto mais honrado e bonito que “gentileza”? –, sua estrutura acústica é quase um xingamento, uma agressão aos tímpanos mais coloquiais, uma palavra com traços de caricatura. “Prurido” é outro protótipo de esquisitice. Toda vez que se coça a pele por picada de mosquito ou reações alérgicas, o nome da incômoda sensação é prurido. Apesar de seu significado objetivo, mesmo que a pronúncia esteja correta persiste um eco de que a articulamos sempre de forma errada. A este mesmo catálogo de palavras abrasivas, há outras de igual descalabro verbal: “conglobar”, “exacerbado”, “sovaco”, “erário”, “orifício”, “recrudescer”, “perpetrar”.
Por fim, as palavras da terceira categoria (as que nos parecem sem sentido) são aquelas que não se apresentam nem feias nem belas, nem mornas nem quentes. São como flores que não cheiram nem fedem (e “feder” participa da lista das feias). “Pélago” é um desses casos. Embora sua etimologia denote algo ao mesmo tempo assombroso e imponente – refere-se a abismos oceânicos, regiões obscuras das profundezas do mar –, pronunciá-la nos soa tão insignificante quanto dizer “vareta”, “cloaca” ou “fresta”. Outra que nos parece insossa é “réquiem”. Assim como a anterior, réquiem também abriga um significado drástico e majestoso, pois é um termo litúrgico para nomear a missa dedicada aos mortos que, em latim, significa “repouso”. Mas afora o contexto religioso, parece-nos uma palavra inventada, quase o grunhido de quando se raspa a garganta: reeeequiem! Nesta página também se classificam: “esfolegar”, “alcíones”, “bácoro”, “homúnculo”, “içar”, “húmus”, “plangente”.
Para estes e mais alguns outros espécimes da fauna do Português é que redijo o presente museu particular de palavras, por suas propriedades incomuns, excêntricas ou encantadoras.
Mas para todas as outras, as que não se importam com aparências requintadas da gramática nem com preciosismos vocabulares da pena dos poetas, coloco-as no mais sagrado altar do Templo da Linguagem, por proclamarem na alma do idioma toda a riqueza de criatividade, dinamismo e versatilidade da nossa cultura. São as palavras da língua do povo, cheia de gírias e malandragens, sotaques e musicalidades. A língua da roça, do gueto, da rua; a língua do almoço à mesa, do café na padaria, do canteiro de obras; a língua das festas, das camas, dos botecos; a língua da praia, da montanha, da floresta; a língua do flerte de esquina, do namoro na varanda, do amor ao pé do ouvido; a língua das igrejas, dos terreiros, das rodas de viola; a língua da criança com o pai, da mãe com o filho, do amigo com o outro amigo; a língua dos canaviais, das lavouras, dos currais; a língua da cidade grande e dos povoados, das mansões e dos barracos; a língua dos carnavais, dos shows de rock, dos bailes funk; a língua dos jardins de praça, dos estádios, dos asilos; a língua do Rio de Janeiro, do Recife, da Bahia; a língua de Espera Feliz, de BH, de Minas… enfim, a língua nossa de todo dia.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com