Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Era maio de 2001 e a véspera da madrugada antecipava o frio pelas ruas vazias da cidade. Estávamos apenas dois ou três moradores da rodoviária e eu no antigo quiosque do Fumacinha, na Praça do Chafariz, quando conheci Belchior.
A primeira impressão foi de que sua voz nasalada acentuando vogais nordestinas combinava com a aparência física de traços graves e fortes que ele tinha. Uma abundante cabeleira cobrindo as orelhas, as maçãs do rosto pronunciadas, o nariz sinuoso de imperador romano e o bigode destacado no contorno da boca imprimiam-no feições de uma genuína personalidade. Era quase uma caricatura exótica de si mesmo: semblante alegre, mas enigmático; uma mistura de Tom Selleck e Seu Madruga.
No entanto, julgava-se ter o perfil de um cidadão comum, alguém que um dia já foi moço e que colecionava histórias sedutoras de batom na camisa. Mas a despeito dos que não o ouviam, absorvidos pelo vício e pela TV do quiosque, reparei que Belchior era na realidade poeta. Não que recitasse versos domésticos com rimas pobres em acessos de pedantismo. Sua poesia surgia ao natural, no ritmo da própria dicção, nas entrelinhas do que dizia acerca dos seus distantes vinte e cinco anos de sonho e de sangue, quando utopia e juventude palpitavam seu coração selvagem.
Admito que a princípio não assimilei muito bem suas palavras. Não porque as ilustrasse com latim e gírias em inglês, mas a matéria sobre as quais tratava e a maneira lírica como discorria me soavam, aos dezoito anos de idade, como o alfabeto de uma outra língua cuja tradução era a própria leitura que se fazia da vida. Falava sobre amores antigos e desilusões juvenis como quem folheasse poemas sobre o passado. Recordava períodos de desespero em 1976, mas também romances no Danúbio azul ao som de tangos argentinos e rock’n roll. E a tudo pincelava detalhes de humor com tintas de ironia e verdade, como quando lembrou dos galos, das noites e dos quintais no Norte de sua mocidade.
Embora pudesse transparecer, não havia olhar lacrimoso no tom de sua fala. Ao contrário. Mesmo que explicasse cicatrizes ou decepções políticas de sua geração, notava-se nele o ar de autoridade dos que transformam pesares em evolução. Por isso, ouvi-lo era como estar diante de quem inaugura em conversas de balcão um fascinante ensaio sobre as coisas que viveu.
Entre um gole de vinho tinto e um trago no charuto, Belchior descrevia experiências que teve ao lado de bons e velhos amigos. Contou dos discos que ouviu e das coisas que aprendeu com Regina, das velas que viu partir de Mucuripe ao lado de Raimundo, das tiradas debochadas com um baiano chamado Caetano. E cada lembrança que emoldurava nos lábios parecia-lhe um quadro na parede da memória – nestes momentos havia sim a nostalgia, mas sua voz era mais de constatação do que saudade.
De um jeito peculiar, era capaz de falar sobre os humilhados do parque, blues jeans e motocicletas com a mesma ênfase quando citava Olavo Bilac, Fernando Pessoa e Drummond. Ia da Divina Comédia a Beatles, de dançarinas de pedra a condores dos Andes. Por isso articulava versos tão viscerais quanto belos, que jamais deixariam impune quem atentamente os ouvisse: “a felicidade é uma arma quente”, “amar e mudar as coisas me interessa mais”, “só sem desejos é que se vive o agora”, “viver é melhor que sonhar” – ao serem proferidos, projetava-se no ar da madrugada um pequeno mapa do tempo entre a história do mundo e eu.
Depois de ouvi-lo pela primeira vez naquela noite aprendi que de sua poesia cada verso era uma lição, uma cartilha de experiências reais decifrando os mistérios de que somos feitos. Desde então, cristalizei sólida amizade com Belchior, um poeta que falava de si como se revelasse uma parte de todos nós.
Muito tempo depois deste encontro inesperado no quiosque da Praça do Chafariz, soube que meu amigo havia desaparecido. Abandonou casa, carros e o vil metal como se metesse o pé na estrada like a Rolling Stone e sumiu sem nem deixar vestígios. Talvez num revés de alucinação e lucidez a que tinha direito, Belchior tenha cumprido a profecia de sua sensível poesia: “saia do meu caminho, eu preciso andar sozinho, deixem que eu decida a minha vida”.
Até que há três anos, à hora do almoço de um sábado nublado chegou a notícia de que nunca mais retornaria. Meu amigo havia feito a passagem. Mas suas palavras ficaram semeadas como se escritas em letras grandes pelos muros do país – e no desenho da lua minguante sempre vejo seu bigode de rapaz latino-americano.
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(Segue minha playlist das músicas citadas, na ordem em que aparecem no texto, com mais 4 bônus – Belchior partiu no dia 30 de abril de 2017)
Spotify: https://open.spotify.com/playlist/7mw5AnZ6WLsuKDR3OMGYj9?si=qJTpl2uwQKe1lzdlo-Ndpw
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com