Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Em matéria de poesia há que se pensar muito além de palavras. Porque poesia precede a palavra, precede inclusive o pensamento. E sendo a linguagem mecânica e poesia, abstrata, sua substância é indizível pois escapa a qualquer idioma possível, esfarela-se na tentativa de reduzi-la a letras e sílabas.
O que não significa que não hajam belos poemas. Tão belos que beiram a perfeição justamente porque sem eles a vida seria outra coisa. Mas por mais belo e comovente que seja o poema, por mais sensível que seja o poeta, o poema no fim é só palavra, ilusão cifrada do que vem a ser de fato poesia.
Poesia é como a nuvem, digamos. Pode ser vista, pode ser sentida, pode ser até mesmo tocada, mas nunca capturada, encapsulada feito líquido na garrafa. E no entanto, a nuvem pode ser imitada – repare o algodão doce, a fumaça de um cigarro, o chumaço de lã crua… assemelham-se, mas não têm cheiro, nem textura, nem sabor de nuvem de verdade.
A poesia é como a ave em detrimento do avião. Uma ave – exemplo: canário, garça, andorinha – possui o voo em sua mais primitiva constituição. Não é que ela aprenda a voar por puro dom ou instinto; toda ela já é em si o próprio voo. O avião, pelo contrário, é feito de partes que, na origem, não deveriam voar – parafusos, fuselagem, metais, fiações – mas que juntas e por tal engenho do esforço humano são capazes de levantar voo, embora numa imitação, quase arremedo, do que uma ave naturalmente é capaz.
A ave, portanto, é poesia; o avião, apenas palavra.
A poesia ultrapassa o escrito porque, como bem sabe o artista, ela também está na sugestão das cores e dos traços. Mas a pintura, assim como a palavra, é só um outro jeito rudimentar de captá-la, de transfigurá-la sem sucesso na paisagem ou cena retratadas. Não é questão de talento ou perícia enquadrá-la com precisão no espaço da moldura. Por mais que se apure a técnica, nenhum artista contemporâneo, clássico ou remoto conseguiu integralmente fundi-la à obra, de tão fluida – nem nos desenhos rupestres, tampouco no sorriso da Monalisa.
Mas então – e afinal – o que pode traduzir a poesia que de tão dispersa dilui-se como um sinal desgarrado no infinito do cosmos?
Lembro-me que lecionava para um único aluno em recuperação. A aula era sobre leitura, interpretação e escrita de… poesia. Há meia hora rodopiando o tema, rabiscando no quadro uma coletânea de versos de toda época e nada do aluno entender o que faz de um texto poesia. Como explicar para um garoto de treze anos o que nem Drummond e Camões compreendiam com total clareza?
Foi quando o mistério do mundo inteligível se revelou, aquele que texto algum é capaz de transmutar em verbo pois falta-lhe vocabulário. Enquanto lia em voz alta um poema (acho que “Desobjeto”, de Manoel de Barros), um pardal pousou na janela, ao lado do menino. Por dois segundos a pequena ave nos olhou, curiosa, emitiu seu trinado de liberdade e depois desapareceu por entre as árvores do pátio, na imensidão de seu minúsculo universo de passarinho. Imediatamente o aluno perguntou:
– Isso que é poesia, professor?
Incapaz de explicar o inexplicável, de converter em linguagem tal instante tão fugidio e belo, pude apenas responder:
– Sim. Isso que é poesia.
Em seguida dei a aula por encerrada. O aluno havia entendido que nao se prende poesia na gaiola das palavras.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com