Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Lição de poesia

Poesia é como a nuvem, digamos. Pode ser vista, pode ser sentida, pode ser até mesmo tocada, mas nunca capturada.

Publicado em 02/08/2023 - 10:27    |    Última atualização: 02/08/2023 - 10:28
 

(@farleyrocha21)

Em matéria de poesia há que se pensar muito além de palavras. Porque poesia precede a palavra, precede inclusive o pensamento. E sendo a linguagem mecânica e poesia, abstrata, sua substância é indizível pois escapa a qualquer idioma possível, esfarela-se na tentativa de reduzi-la a letras e sílabas.

O que não significa que não hajam belos poemas. Tão belos que beiram a perfeição justamente porque sem eles a vida seria outra coisa. Mas por mais belo e comovente que seja o poema, por mais sensível que seja o poeta, o poema no fim é só palavra, ilusão cifrada do que vem a ser de fato poesia.

Poesia é como a nuvem, digamos. Pode ser vista, pode ser sentida, pode ser até mesmo tocada, mas nunca capturada, encapsulada feito líquido na garrafa. E no entanto, a nuvem pode ser imitada – repare o algodão doce, a fumaça de um cigarro, o chumaço de lã crua… assemelham-se, mas não têm cheiro, nem textura, nem sabor de nuvem de verdade.

A poesia é como a ave em detrimento do avião. Uma ave – exemplo: canário, garça, andorinha – possui o voo em sua mais primitiva constituição. Não é que ela aprenda a voar por puro dom ou instinto; toda ela já é em si o próprio voo. O avião, pelo contrário, é feito de partes que, na origem, não deveriam voar – parafusos, fuselagem, metais, fiações – mas que juntas e por tal engenho do esforço humano são capazes de levantar voo, embora numa imitação, quase arremedo, do que uma ave naturalmente é capaz.

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A ave, portanto, é poesia; o avião, apenas palavra.

A poesia ultrapassa o escrito porque, como bem sabe o artista, ela também está na sugestão das cores e dos traços. Mas a pintura, assim como a palavra, é só um outro jeito rudimentar de captá-la, de transfigurá-la sem sucesso na paisagem ou cena retratadas. Não é questão de talento ou perícia enquadrá-la com precisão no espaço da moldura. Por mais que se apure a técnica, nenhum artista contemporâneo, clássico ou remoto conseguiu integralmente fundi-la à obra, de tão fluida – nem nos desenhos rupestres, tampouco no sorriso da Monalisa.

Mas então – e afinal – o que pode traduzir a poesia que de tão dispersa dilui-se como um sinal desgarrado no infinito do cosmos?

Lembro-me que lecionava para um único aluno em recuperação. A aula era sobre leitura, interpretação e escrita de… poesia. Há meia hora rodopiando o tema, rabiscando no quadro uma coletânea de versos de toda época e nada do aluno entender o que faz de um texto poesia. Como explicar para um garoto de treze anos o que nem Drummond e Camões compreendiam com total clareza?

Foi quando o mistério do mundo inteligível se revelou, aquele que texto algum é capaz de transmutar em verbo pois falta-lhe vocabulário. Enquanto lia em voz alta um poema (acho que “Desobjeto”, de Manoel de Barros), um pardal pousou na janela, ao lado do menino. Por dois segundos a pequena ave nos olhou, curiosa, emitiu seu trinado de liberdade e depois desapareceu por entre as árvores do pátio, na imensidão de seu minúsculo universo de passarinho. Imediatamente o aluno perguntou:

– Isso que é poesia, professor?

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Incapaz de explicar o inexplicável, de converter em linguagem tal instante tão fugidio e belo, pude apenas responder:

– Sim. Isso que é poesia.

Em seguida dei a aula por encerrada. O aluno havia entendido que nao se prende poesia na gaiola das palavras.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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