Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
À Maria Izabel e Robson Lacerda
(Dê o ‘Play’ para acompanhar a leitura)
Contornado pela formação geológica delineando desenhos sobre suas cordilheiras, o Vale do Paraíso não poderia ter nome diferente. Pois só de estar lá já nos é um inevitável arroubo de deslumbramento – e em época de festa, o encantamento é ainda maior.
Por isso, depois de dez anos retornei à épica Festa do Paraíso e, em igual intensidade, pude sentir as nostalgias de seu passado longínquo e fazer previsões de um futuro otimista para o evento.
Em sua 38ª edição, a Festa Regional do Trabalho (cujo nome original sucumbiu aos significados da paisagem descrita acima) tem propriedade para confirmar um paradoxo: para a população local não há meio-termo, ou você ama esta festa ou a odeia.
É que o evento se tornou popularmente conhecido tanto pelas qualidades que possui quanto pelos “defeitos” que apresenta. Por ser no coração da Serra do Caparaó, as baixas temperaturas que vêm do Pico da Bandeira obrigam-nos a casacos, gorros e cachecóis sob um denso nevoeiro de outono. E, como é zona rural, se o período é de chuvas pisamos na lama; se é de sol, amarelamos os calçados com poeira. Mas, ao contrário do que se imagina, são estes mesmos pequenos incômodos que caracterizam a Festa do Paraíso e conferem a ela o status cult que, ao longo das décadas, formou várias gerações de devotos.
Uma de suas marcas é que desde seus primórdios, lá pelos anos oitenta, muitos de seus frequentadores acampavam pelas proximidades do evento. E a dinâmica desses campings, que não contavam com nenhuma infraestrutura de banheiros, chuveiros ou comércio, acabava que por criar uma festa paralela onde muitos, ainda que não estivessem acampados, frequentavam as vilazinhas de iglus de nylon em meio às pastagens ou às margens da estrada nas madrugadas de violão, fogueira e Ron Bacardi. Este ambiente alternativo, que atraía boêmios, hippies e viajantes até mesmo de outros estados, imprimia ao evento ares de um festival de Woodstock às avessas, pois os shows, em sua maioria, não eram de rock, mas de forró e sertanejo – com exceção do show do Zé Geraldo, em 2002, em que “Milho aos Pombos” foi cantada como se fosse “With A Little Help From My Friends”, na voz de Joe Cocker no citado festival em 1969.
Só que uma certa fama pejorativa desses acampamentos improvisados e a maneira (quase) desorganizada que os mesmos aconteciam, transmitiam-no uma conotação transgressora quando pais torciam bigodes e mães arrancavam cabelos ao saberem que seus filhos adolescentes estavam indo de mochilas prontas para ficarem por lá dois, três, quatro dias.
Originalmente criada para comemorar as colheitas de cebola na região, inconscientemente a festa foi cedendo espaço para o tema “1º de Maio”, com direito à desfile cívico temático, fanfarra, exposição de produtos agrícolas e artesanatos locais. Mas desde os anos 2000, por motivos que desconhecemos, a Festa do Paraíso foi aos poucos perdendo sua essência e seu peculiar glamour, com shows cada vez menos atrativos e um certo descrédito por parte da população. De seus dias gloriosos, restaram não mais que seu nome e a memória afetiva de uma época que não volta mais.
Mas este ano, contudo, talvez inspirados por esta mesma “memória afetiva” e motivados por um genuíno sentimento de pertencimento, dois jovens de Espera Feliz, a Maria Izabel de Souza e o Robson Lacerda, resolveram arregaçar as mangas e empreenderam a missão de resgatar as raízes daquela que um dia foi uma das festas mais emblemáticas da região. E o resultado, como pudemos comprovar in loco, foi surpreendente.
O que vimos em 2018 no Paraíso foi um evento minimamente pensado e concebido com muito esforço e dedicação. Atrações há muito esquecidas voltaram com o mesmo vigor e empolgação de outros tempos. Tiveram tendas de expositores com trabalhos e produtos típicos, brechó beneficente, desfile cívico das escolas locais, concurso da Rainha do Trabalho, homenagens a moradores célebres da comunidade, roda de viola e sanfona, a final do campeonato rural de futebol e, claro, o já mitológico show do Odair de Paula com sua “gaita velha de fole” na noite de sábado.
Já no domingo, após o motocross com a nova pista remodelada, enquanto o sol poente matizava de alaranjado a face oeste da Pedra Menina, teve o inédito Rock da Tarde com a promissora banda esperafelicense Help Rock e seu repertório de Raimundos à Audioslave – até a lua cheia, como que relembrando a tradição dos antigos acampamentos, surgiu por detrás das montanhas num místico esplendor assim que anoiteceu.
No retorno para casa, conversávamos no carro sobre as possibilidades dessa festa. Por ser realizada em um dos acessos ao Parque Nacional do Caparaó, a Festa do Paraíso deveria não só ser incentivada, como também explorada como principal vitrine do nosso turismo. Pois o Vale do Paraíso e toda a sua exuberante paisagem, com seus novos restaurantes, pizzarias, bares e pousadas, por si só já compõem um cartão-postal e uma potencialidade para o desenvolvimento econômico regional. Por isso, para os próximos anos, seria pertinente a instalação de stands com vídeos, fotografias e folders apresentando nossos atrativos naturais aos visitantes e jipes credenciados prestando serviços de passeios diurnos às cachoeiras, ao Parque Nacional e às propriedades de cafés especiais. Também, entre as já habituais barraquinhas de drinque e camelôs, valorizaria ainda mais a festa a organização de uma praça de alimentação com mini versões das cafeterias rurais e urbanas que vêm surgindo por aqui (devido aos nossos cafés de qualidade internacional), além de bancas de doces, salgados, queijos, cachaças, cervejas e outros produtos artesanais típicos da região.
Desta forma, a Festa do Paraíso, a mesma que um dia equivocadamente foi rotulada como “lugar de maconheiro” ou “festinha de canto de roça”, retomaria seu apogeu e, prestes a completar suas quatro décadas de existência, receberia enfim o seu merecido reconhecimento: o de patrimônio cultural do município de Espera Feliz.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com