Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Lembrança dos ciganos

Mas bastava que chegassem os ciganos para que todas as cores se transformassem.

Publicado em 15/12/2022 - 16:06    |    Última atualização: 15/12/2022 - 16:06
 

Houve um tempo em que tínhamos medo dos ciganos. Nem sabíamos como nem por quê. Talvez pelo estigma de darem tombo na barganha ou de andarem com ouro nos dedos e ainda assim dormirem sob tendas.

– Corre porque chegaram os ciganos! – gritavam as mães ligeiras ao terreiro. – Vem logo ajudar a catar a roupa do varal!

Era estranho a desconfiança porque lá embaixo, no terreno vago ao lado do rio, só tinham homens e mulheres e crianças e cachorros tão iguais a nossa gente que apenas as indumentárias os identificavam como sendo de fora: as damas com vestido longo e florido; os cavalheiros com chapéu preto de abas enormes.

Tanto que não demorava muito para que se familiarizassem, misturando-se entre nós como se já fossem do lugar. Percorriam a vila de porta em porta oferencendo tachos de cobre e tecidos de renda, e seus filhos vinham brincar conosco com os mesmos jogos que estávamos acostumados.

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Pedra Menina era então um arraial cravado ao pé da serra onde cuja rotina rural pouco se distinguia entre um domingo e uma quinta-feira. Eram quase sempre monótonos os dias, sob a sombra da eterna nuvem cinza ancorada na montanha.

Mas bastava que chegassem os ciganos para que todas as cores se transformassem. Videntes versejavam previsões nas palmas estendidas em todas as varandas, rapazes com pulseira de couro e bandana amansavam éguas no meio da rua e velhos de barbas brancas – aqueles de chapéu de grandes abas – traziam-nos relatos de meio-mundo acocorados na calçada em frente à vendinha. Por serem forasteiros, pairava na vila um ar de novidade como se fôssemos curiosos na presença de estrangeiros.

Por hábito, costumavam levantar antes do sol e pouco depois do anoitecer se recolhiam ao acampamento para tocar bandolins, acordeãos, dançar e contabilizar o comércio do dia. Nessas horas, transitar por entre suas barracas era como participar de uma festa. Haviam tochas acesas sob as estrelas cadentes, caldeirões de ensopado com temperos do oriente e grandes grupos em volta de fogueiras rindo e conversando num misterioso dialeto.

Nômades, permaneciam ali só por poucas semanas, mas o suficiente para, após a partida, sentirmos como se ainda estivessem por perto. Era uma gente enfeitada de medalhas e sorrisos, que com suas tradições e trejeitos tão diferentes lançava sobre nós alguma coisa de terra encantada. Depois que iam embora, tínhamos a impressão de que no lugar onde acampavam perdurava uma luminescência etérea como se deixassem para trás um rastro faiscante de vagalumes.

É que irradiava da tribo uma certa aura mística que nossa realidade comum era incapaz de decifrar. A julgar pelos seus gestos e palavras, sempre tão gentis quanto o riacho do vilarejo, não se poderia esperar outra coisa senão o carisma – ainda que subjugados e perseguidos pelas más línguas através dos séculos.

Acho que por isso não era medo o que sentíamos dos ciganos, mas fascínio. Porque aquele povo vindo de longe, que trazia na dicção o sotaque de uma pátria sem fronteiras possuía uma sabedoria que não podíamos compreender: sua capacidade de não fincar raízes, de fazer dos horizontes a razão de seu próprio destino.

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Enquanto nós, isolados pelas montanhas ao redor, desconhecíamos o que para eles era primordial: a liberdade de ser e viver onde, quando e como bem entendessem.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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