Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Quando estivemos em Paris, há exatos três anos, a Catedral de Notre-Dame foi o primeiro ponto turístico que visitamos. Era uma manhã ensolarada e fria de abril – embora já fosse primavera no hemisfério norte – e na Rue Du Cloître-Notre-Dame, em uma das laterais da colossal igreja de pedra, estendia-se uma fila de visitantes com uns cem metros de comprimento, da qual se podia ouvir bochichos e tagarelagens em idiomas do mundo inteiro.
Além do Arco do Triunfo, da Avenida Champs-Élysées, da Basílica de Sacré-Cœur em Montmartre, do Jardim de Luxemburgo, do Panteão no Quartier Latin, do Palácio de Versailles, do próprio Museu do Louvre com sua gigantesca pirâmide de vidro e, claro, do símbolo máximo da capital francesa a Torre Eiffel, Notre-Dame desperta a cobiça dos turistas não apenas pela beleza faraônica percebida à distância por quem margeia o Rio Sena, mas principalmente por ser um dos mais importantes elos de ligação entre o passado de uma Europa medieval e o presente de um mundo globalizado.
Quando penetramos por uma das três imensas portas de ferro que dão de frente para o descampado da Praça Jean-Paul II, temos a sensação de adentrarmos uma realidade da qual só conhecemos pelas figuras dos livros e das cenas de filmes de época. É como se o silêncio exigido quando estamos em um local sagrado fosse o mesmo que ecoasse das orações dos antigos padres e monges desde quando a catedral começou a ser construída, há mais de 800 anos.
Ainda que não se conheça detalhes das várias camadas de história estampadas pelo chão quadriculado de seu extenso saguão sombrio e nas arrojadas paredes de pedra de onde a luz do sol trespassa através dos vitrais com pintura gótica, é possível sentir a energia acumulada no local durante os séculos. E, para isso, nem é preciso ser religioso ou adepto da fé cristã. Basta caminhar alguns metros por entre as centenas de bancos de madeira ou tocar em uma das robustas colunas de mármore que sustentam seu teto abobadado que logo um misto de êxtase, espanto e devoção toma conta de nossos sentidos – seja pelo arrepio dos poros do corpo, pela visão das imagens sacras que habitam o local ou pelo cheiro de mogno e poeira que povoa o recinto desde tempos imemoriais.
Por isso, a notícia de que Notre-Dame foi consumida pelas chamas de um terrível incêndio nos chega em vários tons de desconsolo e luto. Primeiro pelos que não tiveram a chance de conhecê-la de perto e sentir as vibrações ancestrais que ela desperta; depois pelos que tiveram a oportunidade ímpar de adentrá-la e saber que este tesouro da humanidade já não existe mais; e, por último, por termos a triste certeza de que a cultura do mundo fica mais pobre sem a presença desta catedral que assistiu o Renascimento, os movimentos de Contrarreforma e a Santa Inquisição, a ascensão do Iluminismo, revoluções e guerras que mudaram para sempre nossa história e, ainda assim, manteve-se de pé como um arauto de fé e guia da nossa civilização.
Sob o calor implacável do fogo desabaram-se não apenas seus gárgulas, sinos e torres, mas principalmente um cenário importante de nosso passado histórico com matizes de canto gregoriano na ressonância de órgãos do século XVI, de onde surgiram a literatura, a arte e a arquitetura que até hoje influenciam nossa cultura e nossa visão de mundo.
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Outra noite estava no Trailer da Marlene, na Praça Cira Rosa de Assis, bebendo uma Coca-Cola e ouvindo os causos hilários do excêntrico Fumacinha quando não pude deixar de notar, na mesa ao lado, a conversa de um homem de uns quarenta e poucos anos, meio embriagado, que falava em tons severos sobre a “burrice” que era manter uma velharia daquelas de pé, referindo-se à Rodoviária Alfredo Brandão, a cinquenta metros dali.
De curiosidade, pedi licença e perguntei seus motivos. Retorcendo a boca em bafores de cachaça e conhaque, ele respondeu, com o mesmo ar severo dos seus olhos avermelhados: “Pra quê ter uma edificação feia, suja e fedorenta manchando o centro da cidade? Se eu fosse o Carlim (o Prefeito), passava um trator em cima disso e construía um prédio bem bonito de dez andares no lugar, com vidraças espelhadas, elevadores e pontos de comércio no térreo.”
Com meu talento inútil para fazer de pedras poesia e de assuntos banais crônicas ainda mais inúteis como esta, argumentei com o moço bêbado com a mesma nobreza a qual trato meus alunos. Expliquei a ele que a rodoviária era “feia” apenas porque ele a via assim. Apontando para lá, disse que ao olharmos para aquela estrutura de paredes robustas e varandões de telhado alto, sustentados por trilhos de ferro arqueados sob plataformas de rocha e concreto, não estávamos vendo apenas um prédio “feio e sujo” – como ele próprio colocara –, mas um recorte vivo do passado de uma cidade que não existe mais.
Assim como o Hotel Montanhês, o Seminário e o conjunto de casarões antigos que ainda restam na rua Américo Vespúcio de Carvalho são memórias latentes de uma Espera Feliz que já se foi, a Rodoviária Alfredo Brandão, que um dia fora uma romântica estação com trens a vapor chegando e partindo com passageiros, mascates, damas e senhores de chapéu, é um capítulo importante de nossa história, sem a qual ficaríamos mais pobres e órfãos de nossa própria cultura.
Então, resguardadas as devidas proporções, falei do exemplo do trágico incêndio na Catedral de Notre-Dame. O homem, de braços cruzados e me encarando com seus olhos descompassados de bebura, questionou-me: “Notre… o quê?”
Apenas sorri com cortesia, falei boa noite e voltei aos causos do Fumacinha, enquanto a rodoviária, do alto de seus cem anos de existência, fitava-me de longe com a discreta alegria de quem tem seu valor reconhecido por um cidadão qualquer.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com