Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Carta à amiga

Porque, confesso, a ideia de sua partida nunca me pareceu muito real.

Publicado em 20/07/2021 - 18:01    |    Última atualização: 20/07/2021 - 18:02
 

Minha querida amiga,

Perdão por não ter escrito antes. Garanto que não foi por descaso ou esquecimento. Mas é que desde que você se foi não me acostumei totalmente com a sua ausência, e escrever uma carta seria como cumprimentar uma pessoa da qual não cheguei a me despedir. Na verdade, sua imagem ainda me é tão vívida que às vezes chego a acreditar, só de lembrar, que você nunca de fato partiu. Que daqui a pouco você passará pela porta e encherá com sua graça e sua voz todos os espaços que agora repousam no silêncio.

Por isso não escrevi antes. Porque, confesso, a ideia de sua partida nunca me pareceu muito real, tamanho o peso que sua presença ainda exerce em minhas memórias. E quando alguém tão presente em nossa rotina se ausenta, não é “saudade” a que chamamos esse vazio que fica, mas uma outra coisa sem nome, algo que apenas sentimos sem que sejamos capazes de explicar.

Afinal, como redigir uma carta à uma amiga que partiu se, para mim, ela permanece aqui, do meu lado, como alguém que não se foi?

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Perdão, minha amiga, mas foi por esse motivo que não pude lhe escrever antes. Somente hoje, depois que o tempo demarcou a distância desde a última vez em que nos vimos, é que me dei conta de que você não está mesmo por perto. Assim, escrever-lhe uma carta não é uma tentativa de trazê-la de volta, para perto de nós, este lugar de onde jamais deveria ter saído. Mas uma maneira de nós, que ficamos órfãos de seu abraço e de sua alegria, nos sentirmos mais próximos de você, onde quer que esteja agora.

Então, não falarei dessa saudade sem nome nem da falta que seu carisma me faz, mas de uma parte de você que se eternizou em mim depois que me dei conta de que você não voltará mais.

Lembro-me perfeitamente o dia em que nos conhecemos, há mais de dez anos. Era um sábado ensolarado de outubro em que os dados da vida haviam me lançado à má sorte. Eu estava triste, caminhando a esmo pela rua, quando seu filho caçula, já então um amigo quase antigo, me levou até você. “Minha mãe é uma fortaleza. Saberá dizer alguma coisa”, disse-me ele, oferecendo gentilmente o ombro.

Mas naquela tarde, em sua casa, não houve formalidades de uma sessão de terapia ou a simulação constrangedora de um confessionário cristão. Pelo contrário, reunidos na mesa da cozinha, enquanto jogávamos buraco e petiscávamos linguicinha com cerveja, você foi me conhecendo aos poucos, extraindo de mim o que me afligia, fazendo-me perguntas informais com a mesma naturalidade que faz surgir as mais duradouras amizades. Poucas horas depois percebi que as histórias que me contava não eram exatamente conselhos, mas verdadeiros exemplos de vida – adquiridos por sua própria experiência – de que não há nada que não se possa dar a volta por cima. Por trás do leque de cartas, você falava e sorria; na parte oposta da mesa, eu ouvia e aprendia. E, graças às suas palavras de compreensão e afeto, antes mesmo de terminarmos a partida de baralho eu já me encontrava rindo de mim mesmo e do modo hilário que só você tinha ao tratar de assuntos sérios. Eu não pude prever, mas este foi o primeiro de muitos outros risos que dividimos ao longo de nosso convívio.

Com o tempo, a amizade que tinha com seus três filhos se consolidou ainda mais e se estendeu a você, seu marido e alguns outros de seu círculo mais íntimo. Não demorou muito para que minha esposa e eu começássemos a frequentar sua casa não apenas como pessoas queridas, mas como quase-parentes preenchendo espaços tão especiais que nem os de laços consanguíneos são capazes de ocupar. Formamos então uma espécie de família por consideração cujo maior bem eram o respeito mútuo e a vontade de estar perto.

Dali em diante, os anos que se seguiram foram de um intenso e fortuito contato – se não diário, pelo menos semanal. Não havia uma data importante que nós – minha esposa e eu, você e sua família – não estivéssemos juntos. Em aniversários, feriados e dias santos, dividíamos horas de conversas e risadas, partilhávamos dos mesmos banquetes, dançávamos embalados pelas mesmas músicas do seu tempo e do meu tempo, e assim fomos regando uma amizade tão enraizada quanto às flores de um jardim bem cuidado. Desses encontros, éramos os jardineiros dos bons sentimentos que cultivávamos.

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Lembro-me das noites de Natal e Ano Novo que passávamos no sítio. A varanda do casarão toda ornamentada com cores de festa, o cabrito assado recém-tirado da churrasqueira e nossos copos, sempre meio cheios, erguidos para celebrarmos a saúde, a união e a paz. Sobre as mesas distribuídas nessa mesma varanda sempre havia um carteado para entreter as horas, um som animado na madrugada a dentro. E quando o rigor do inverno batia à porta, sua ampla cozinha de roça nos abrigava para aquecermos o corpo e a alma através do crepitar do fogão a lenha onde fervia a canjica, do cálice de boa cachaça servido pelo seu marido, das conversas sobre passado, presente e futuro que enchiam de ternura esses nossos encontros.

Lembro-me bem, minha querida amiga, que quando chegávamos, antes de estacionarmos os carros abaixo dos pinheiros você já nos acenava de longe, com os braços abertos e o semblante alegre, e mesmo à distância podíamos sentir seu coração transbordando gestos de boas-vindas. “Hei, Nega!”, você dizia à minha esposa; “Olá, professor!”, você dizia a mim. Em seguida, no decorrer da tarde ou da noite, não importava a quantas pessoas tivesse que ceder a sua concorrida atenção você sempre reservava um tempo para papearmos a sós. Começávamos falando banalidades da rotina, depois contávamos anedotas e assuntos prosaicos, e quando menos percebíamos já estávamos discutindo sobre os grandes temas da humanidade como o amor ao próximo, a solidariedade e a urgência de se vencer obstáculos e escrever a história da própria vida.

Apesar da diferença de idade – eu, um velho jovem de quase quarenta; você, uma jovem senhora com pouco mais de sessenta – nos entendíamos de igual para igual. Ao contrário do que dizia brincando, você não era nada cafona. Eu é que me interessava por suas vivências antigas e descoladas, e você por minha inexperiência careta e retraída. Assim, de algum modo muito especial nossos universos se cruzavam e nos reconhecíamos como dois seres distintos habitando o mesmo tempo e espaço. Falávamos sobre tudo e qualquer coisa e, embora admirasse meu título de professor, era eu o aluno perante sua autoridade de mulher, mãe, avó, esposa e matriarca.

Sinto muito a sua partida, minha amiga, mas o que mais sinto falta são desses momentos de conversa franca que tínhamos, quando me apresentava com seu jeito modesto os ensinamentos que nenhum dos mais sofisticados livros que li – ou que ainda vou ler – poderiam trazer impressos nas páginas. Porque sua sabedoria vinha da prática, da vida real, da vida em movimento, conquistada com lutas, dissabores, superações e vitórias.

Por isso, minha amiga querida, agora que a força imprevisível do destino nos separou, escrevo-lhe esta carta para que saiba o quanto de você ainda permanece aqui, em nossos corações. Nós que tivemos a honra de partilhar sua existência, de dividir contigo o pouco que somos e o muito que viemos a ser com a sua presença.

Já que o futuro nos privou de tê-la por mais tempo, consolam-nos ao menos esse passado em comum e a certeza de todos os bons momentos que tivemos. Que a luz dos seus olhos continue a nos guiar. Que seu sorriso nos lembre a alegria que é viver.

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Um abraço recheado de recordações do seu amigo de ontem, hoje e sempre.

Com carinho, Farley.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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