Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
*A crônica de hoje está com um tempero especial. O professor e escritor esperafelicense João André Simiquelli emprestou sua voz e seu talento para narrar meu texto. Dê o play no vídeo e acompanhe a leitura:
São dez e meia da noite e a moça está solitária na Praça Cira Rosa de Assis. Não está sentada nos bancos ao redor do chafariz nem sob o pergolado de concreto de bougainvilles, mas na mureta que divide a calçada e o canteiro gramado. Sem gestos e sem expressão, analisa o verão no reflexo do farol dos carros que vêm e no passeio flutuante dos casais sorridentes que vão.
A noite clara e quente de janeiro contrasta com seus olhos frios e escuros. Mas não é de mágoa ou desamparo; tampouco de paz ou calmaria. É a frieza dos que olham sem ver, dos que observam sem enxergar, dos que esperam por algo que nunca vai chegar. Contudo, aparenta na face inerte aos transeuntes a dureza inquebrantável dos que aprenderam a se conformar.
É bela. Na textura da pele alva se destila o hálito fresco de jovens pétalas: vinte e poucos anos – ainda que possa ter trinta ou trinta e poucos. Sobre os olhos obtusos e vagos, arqueiam-se sobrancelhas delineadas que dão ao conjunto bem maquiado do rosto um ar de tranquilidade às feições retas do maxilar imóvel, sem sorrisos.
O movimento da cidade, mesmo que no apagar de janelas a esta hora, não distrai a atenção da moça. Nem zunidos de motocicletas pela Fioravante Padula, nem o Bar Central varrendo as calçadas, nem os adolescentes na Casinha de Pedra dispersam a atenção que ela presta a si mesmo. Estará voltada à partida de seus homens? Ao príncipe encantado domador de Ferraris? Aos cálculos que a vida nos obriga diariamente?
Mas da esfinge que encerra conclusões sobre seu semblante não se permite sequer conjecturas. Talvez se esquecera da força natural que jaz inabalável de seu instinto feminino.
Fosse réveillon, Carnaval ou 7 de Setembro, nem fogos de artifício, escolas de samba ou bumbos da Fanfarra desviariam seu olhar: sob árvores submergindo em sombras o seu rosto, permanece sentada com as mãos entre os joelhos, o pescoço ligeiramente inclinado à direita, olhos vidrados à frente como se mirasse um inseto desconhecido na rachadura do asfalto.
Poderia ser ela do Bairro João Clara, da Avenida Jaime Tolêdo ou do Alabama. A blusa de renda preta e a calça blue jeans que veste não definem precisamente quais são suas crenças, nem seu idioma ou formação profissional. Brasileira ou estrangeira, rica ou pobre, conservadora ou libertária a moça sentada na praça é um anônimo enigma que – parece – não deseja ser desvendado.
Talvez a brisa que agita mansa as folhas do jardim ao lado penetrasse cada um de seus negros fios de cabelo, trazendo à tona os sinais vitais de uma jovem mergulhada em seus mais profundos pensamentos. Mas descendo lisos por sobre os ombros, estão estáticos, apáticos como ela à atmosfera desta noite de janeiro. Posto que ninguém percebeu quando chegou, como também não será vista quando partir, quem passa em frente julgaria tratar-se de um objeto urbano, invisível entre homens e mulheres, comum à arquitetura que compõe a cidade.
E assim permanece imóvel, indiferente ao latido dos cães de rua, ao abandono dos que a seus pés arrastam farrapos, aos manos de boné e tênis cantarolando funk, à noite que embrutece ainda mais seu silêncio à medida em que avançam as horas.
Mais tarde, quando a praça esvaziar-se de gente para inaugurar apenas o voo das corujas e mariposas, pouco a pouco a moça recobrará a atenção do mundo que a cerca. Em seguida, retornará à casa onde deixou pelo chão os cacos espalhados de sua desconhecida história: um companheiro neurótico obsessivo, um filho guardado na imagem de um porta-retratos, um cartão de crédito com pagamento vencido, um coração que ficou (ou deixou) partido.
E ninguém mais no mundo, exceto os bancos vazios da praça, as palmeiras do Jardim Central e o Cruzeiro do Sul saberá que a moça com blue jeans e maquiagem esteve ali, distraindo-se de angústias, sonhos e mistérios, nesta noite de verão no centro velho de Espera Feliz.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com