Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Acima dos copos e garrafas, entre as rajadas fluorescentes das luminárias, através dos cardápios, perfumes e bijuterias ao redor das mesas meu olhar se lança penetrando nuvens de vozes e risos pelo saguão do bar. De um lado, avisto uma mulher sozinha segurando um drink, sentada abaixo do quadro da moça em traços geométricos de uma solidão cubista. Ambas fumam – a do drink e a do quadro.
No lado oposto, avisto grupos brindando qualquer alegria com doses de tequila e St. Remy. Entre eles, um casal pós-puberdade com narizes avermelhados se beija – ele, usando gorro, barba e piercing, parece um lenhador pop; ela, com tênis All Star e estrelinha tatuada no pescoço, parece apaixonada…
(…cenário pouco provável para esta crônica, já que não vejo nenhum quadro, copos ou casais.)
Passos estalam nas calçadas pelas margens da avenida. Prédios engolindo o céu, os pombos e a luz do sol. Qualquer das direções são resumidas num empilhado desconexo de vitrines, ônibus, concreto e gente – justapostos em meio ao pó, semáforos e buzinas. Pelas ruas, CO2 consome todos os organismos vivos, vestígios de combustível fóssil contaminando as narinas da metrópole.
Na paralela, milhares de outros passos pisam duros e se vão, sem nem guardarem lembranças dos que vêm…
(…cenário nada provável para esta tentativa de crônica, já que meus pés tampouco andam por ali.)
Na planície árida que se estende à minha frente, um deserto parece não possuir fim. Raros cactos e plantas brutas pontilham de verde o solo onde tudo é amarelo. Não há dunas ou vento ou escorpiões. Longe, pedregulhos refletem na sombra escaldante meia dúzia de caricaturas imaginárias – que não passam de miragens. Não há oásis nem sinal de caravanas perdidas. Ao norte, um avião distante deixa um melancólico rastro branco no ar e some em câmera lenta no horizonte, como uma nave fantasma zanzando silenciosa sobre mares de areia e vapor…
(…cenário o mais improvável para esta ou qualquer outra crônica, já que desertos de verdade são bem mais belos do que este que descrevo)
Em algum minúsculo ponto da América do Sul, debruço-me à escrivaninha entre xícaras, celular, moedas e revistas tentando relatar aventuras que jamais vivi. E pela vaga ilusão de obter sentido nisto, esforço-me – talvez em vão – curvado sobre uma folha de papel amassado e uma caneta esferográfica velha, a mesma com a qual desminto minhas próprias mentiras e borro de preto essas linhas mal tracejadas…
(… e este é o único cenário provável para esta crônica que, nem bem começou, já chegou ao fim.)
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com