Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

A memória das árvores

Afinal, elas estão por aqui desde eras inconcebíveis, povoando vales, pântanos e montanhas.

Publicado em 11/11/2022 - 15:16    |    Última atualização: 11/11/2022 - 15:16
 

Poderíamos narrar a história do mundo recorrendo à memória das árvores, caso elas falassem pelo ruidoso atrito do vento nas folhagens ou gesticulassem os galhos como fazemos com nossas mãos e braços. Afinal, elas estão por aqui desde eras inconcebíveis, povoando vales, pântanos e montanhas, oxigenando a atmosfera desse gigantesco organismo chamado Terra.

Como artérias sob os tecidos de um corpo, dizem que suas raízes, interligadas nas profundezas do subsolo, transmitem umas às outras informações ancestrais para que se mantenham vivas e se proliferem. Por isso, derrubar uma árvore é o mesmo que interromper uma voz que ainda tem muito a dizer – para os da sua espécie e também para nós.

Lembro da frondosa espatódea que vi na comunidade de Pedra Negra, plantada numa encruzilhada ao lado de um terreirão de café, e fico imaginando gerações de homens e mulheres que descansaram à sua sombra depois das lavouras, os casarões coloniais das fazendas que se ergueram e se ruíram diante dela, as carroças e carros-de-boi que ela viu passar na estrada enquanto as estações desfolhavam e floresciam sua majestosa copa.

Em suas sementes, encapsuladas pela frágil película de pétalas vermelhas, haveria de conter qualquer parentesco genético com outras nativas de seu continente de origem: os monumentais baobás, tão inspiradores aos olhos quanto aos mitos do povos africanos.

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Também penso no jequitibá-rosa do Grumarim com seus quase 50 metros de altura e 16 de circunferência que, destacado no meio da mata, faz lembrar as sequoias norte-americanas e sua imponente presença de gigantes milenares. Pela idade, ambas são testemunhas vivas do tempo, anciãs de um planeta antigo sobre o qual viram civilizações inteiras nascer espontaneamente e morrer pelo extermínio colonial que nos concebeu.

Há na memória dessas plantas muito do passado que já sabemos, mas bem mais a descobrirmos sobre o tipo de futuro que queremos.

Lembro da araucária da Serra do Caparaó que, solitária entre pedregulhos e capoeiras a mais de 2.000 metros de altitude, resistiu por décadas às intempéries da montanha e assistiu à chegada dos primeiros exploradores da região e à passagem de aventureiros rumo ao Pico da Bandeira.

Penso nas embaúbas, nas quaresmeiras, nos ipês e nas centenas de espécies da Mata Atlântica que abrigam na estrutura generosa de seus caules a paleta exuberante das plantas epífitas. Sem elas, orquídeas, samambaias, bromélias e musgos teriam se extinguido antes que pudessem enfeitar nossas varandas e jardins.

Lembro das árvores petrificadas do monte Kakenkorani, no Peru, e penso nas notícias que elas trazem de uma América do Sul pós-jurássica. Cada fragmento de tronco, cada lasca fossilizada de galho são vestígios de uma natureza remota no tempo e no espaço cujo estado mineral em que se encontram sinaliza qual paisagem prevaleceu num passado distante.

Além de serem o lar de primatas, aves e uma diversa fauna de minúsculas criaturas, todas as árvores, espalhadas pelas savanas do Congo, pelas tundras da Sibéria, pelas planícies amazônicas ou pelas cordilheiras da Pedra Menina são pergaminhos onde nossa história se registra – desde muito antes de nós e também agora, apesar de nós.

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Por isso, se elas falassem, sentaríamos confortavelmente à suas sombras como discípulos gregos ao pé de filósofos e escutaríamos lições acumuladas por séculos na superfície áspera do seu casqueiro, ouviríamos lendas cultuadas por habitantes pré-históricos das selvas e assim aprenderíamos de uma vez por todas com quantos paus se preserva uma floresta.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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