Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Chara vivia de mau humor. Pelo menos é o que todos achavam quando a viam sisuda indo para o trabalho. Era assistente de penteados num salão do centro e quem a conhecia sabia que seu rosto era sempre um desenho reto.
As pessoas na rua cumprimentavam Chara. Mas ela, sem frescor nos gestos ou
dobras nos lábios, apenas acenava com a cabeça e um espasmo no olhar. Não
porque fosse de gelo sua ternura ou se sentisse murcha no seu jardim de
solidão. É que mesmo estampando juventude na face, não ficava à vontade para
sorrisos gratuitos. “Ranzinza feito uma velha”, julgavam-na pelas costas, como
se fosse da conta alheia a personalidade privada de Chara.
No trabalho até que se fazia menos árida, ao desfiar frases curtas entre cabelos, escovas e secadores – mesmo assim, o espelho à frente refletia não mais do que apenas o sorriso de suas clientes.
Embora trabalhasse muito – até às dez da noite, dependendo do dia – este não
era o motivo para a cara nublada de Chara. Porque para as coisas que gostava de
fazer não precisava mesmo de muito tempo.
Quando Chara chegava em casa ocupava-se com revistas de moda e estética. Na
gaveta da cômoda havia dezenas delas. Às vezes recortava figuras e fazia
colagens, criando paisagens de praia e campo para modelos suecas que tirava das
páginas. Na outra gaveta guardava incontáveis recortes, que dividiam com Chara o
silêncio do quarto.
Mas o que Chara realmente gostava era da coleção de chave que juntava desde criança. Ainda que não soubesse a origem de seu fascínio, bastava encontrar alguma sem uso que logo a recolhia ao estojo de seus guardados. Distraía-se por horas polindo cada peça. Eram chaves grandes, médias e pequenas, chaves de cadeado, de porta, de portão, chaves de guarda-roupa, de cofre, de gaveta e até chaves de caixinha de segredo.
No entanto, nem sua coleção tão exótica quanto seu nome despertava o sorriso que Chara jamais esboçava. Era mesmo um tipo muito sério a moça que fazia penteados.
Mas um dia Chara soube, pelas colegas do salão onde trabalhava, que o rapaz da
contabilidade a olhava diferente. Na hora não demonstrou interesse, mas
esforçou-se entre esmaltes e maquiagens para que ninguém notasse sua curiosidade.
Não que esperasse de um príncipe encantado pretextos para sorrir. Chara era plena de si e sabia que só a concha da própria vida é capaz de gerar a pérola da alegria. Mas afinal era bonita, vestia-se bem e possuía um charme natural no caminhar. “Por que não?”, indagava a si mesma, “já que o amor acontece quando menos se espera…”
Uma noite, enquanto apreciava suas chaves reluzindo no estojo, Chara teve uma ideia. Decidiu parar de colecioná-las e todos os dias levaria uma consigo, para deixá-la cair na rua sempre que seu pretendente passasse. Assim, no dia que o moço percebesse e a chamasse para devolvê-la, o retribuiria então com um merecido sorriso que ela, em segredo, já vinha ensaiando sozinha no espelho.
Mas por timidez ou receio da cara eternamente trancada de Chara, o rapaz jamais se atreveu a chamá-la. Não que fosse de propósito ou maldade, mas sua cotidiana seriedade confundia-se facilmente com a máscara da indiferença ou desprezo.
Só depois que deixou cair a última das chaves que colecionava é que Chara descobriu que a porta que pretendia abrir nunca estivera fechada. Percebeu que para revelar o sol que brilhava dentro de si bastava, apenas, sorrir.
Desde então, Chara passou a colecionar sorrisos.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com