Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

A bola de ferro

A existência daquele artefato me despertava dupla curiosidade: que tipo de bola era aquela e por que cargas d’água estava “guardada” naquele local, desconexa dos utensílios domésticos.

Publicado em 04/06/2021 - 09:42    |    Última atualização: 04/06/2021 - 09:42
 

Durante a infância, minha família e eu moramos por dois anos em Patrimônio de São Raimundo, que depois passou a se chamar Pedra Menina. Como o povoado fica a 20 quilômetros do centro de Espera Feliz, a cada quinze dias vínhamos à cidade para fazer compras e visitar os parentes. Foi nessa época que vi pela primeira vez a bola de ferro na casa dos meus avós paternos.

Vó Maria e vô Nico moravam na rua José Grillo, próximo ao trevo para o Espírito Santo, numa casa bege de fachada art dèco provinciano com varandinha de fim de tarde virada para a calçada – do mesmo feitio daquelas poucas que restam na rua Pereira, pertencentes à primeira era de Espera Feliz.

Nos fundos daquela ampla e silenciosa casa com cheiro de baú envelhecido, havia a cozinha com assoalho de tábuas muito gastas, uma janela sobre a pia pela qual se avistava o Pico da Bandeira nos dias claros e uma íngreme escada de madeira à direita, que dava acesso ao enorme quintal lá embaixo onde ficavam a gaiola do Loro, os pés de manga-coquinho, a horta de almeirão e o porão de quinquilharias do meu avô. Era nesta cozinha que a bola de ferro ficava, presa em um pequeno vão quadriculado entre a parede e o teto como um inesperado objeto esférico do tamanho de uma laranja grande.

A existência daquele artefato me despertava dupla curiosidade: que tipo de bola era aquela e por que cargas d’água estava “guardada” naquele local, desconexa dos utensílios domésticos. Meu pai nunca soube me explicar. E meus avós, talvez por eu não ter tido tempo de lhes perguntar devido sua já avançada idade, também jamais puderam me responder.

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Mas a realidade é que aquela bola de ferro enferrujada, camuflada por trás do brilho das panelas exemplarmente ariadas sobre o armário, sempre me suscitava aos meus seis anos de idade os mais descabidos mistérios que rondam a imaginação de qualquer criança. Então, por não saber do que se tratava, colocava-me a inventar, na prodigiosa e barulhenta oficina dos pensamentos infantis, os mais épicos e improváveis sentidos para ela.

Por isso, sempre que tomávamos café ao redor da mesa de carpintaria da cozinha, distraía-me das conversas triviais dos adultos e, cá de baixo, enquanto soprava a caneca de esmalte, olhava a bola no alto da parede e ficava imaginando quais histórias orbitavam suas origens e os caminhos errantes que a trouxeram até ali.

Uma vez, sentado no tamborete de madeira, no mesmo ritmo que mastigava um pão com manteiga comecei a pintar em devaneios soltos o desenho imaginário de uma praia desconhecida. Ao longe, navios corsários ameaçavam atacar um forte no litoral ensolarado; em terra firme, homens fardados empunhando baionetas distribuíam-se a postos ao longo da trincheira, onde um general de bigodes e medalhas no peito ordenava comandos aos soldados em combate. Já no mar, marujos esfarrapados recolhiam as velas num emaranhado de cordas carcomidas pela maresia, enquanto o capitão, exatamente com uma perna-de-pau, papagaio ao ombro e tapa-olho, estudava o adversário pelas lentes trincadas de sua luneta. Acima dele, preso ao mastro da gávea, o inconfundível símbolo de uma bandeira negra flamulava aos quatro ventos marítimos a figura de uma caveira. E do convés de um dos navios, um pirata com dentes de ouro acendia o pavio do canhão de pólvora. Logo após a explosão, uma bola de ferro cruzava o céu num rastro faiscante sobre a areia da praia e atingia em cheio a superfície da fortaleza, resvalando-se intacta para o lado de dentro da muralha.

Como minha família paterna descende de italianos do Mediterrâneo, presumi que um daqueles combatentes imaginários talvez fosse um ancestral que se apossara do projétil de canhão e o transmitiu, através dos séculos, como uma exótica relíquia de família até que chegasse desvirtuado de passado à cozinha de assoalho da casa dos meus avós.

Em outra dessas tardes de café à mesa também cheguei a projetar mentalmente que aquele enigmático objeto esférico tivesse origem nas cinematográficas prisões norte-americanas de cem anos atrás. Porque naquele tempo eu sabia, por relatos do meu pai, que um desconhecido primo havia partido para o estrangeiro. Por isso, conforme minhas aventuras teóricas, este primo poderia ter sido preso como um forasteiro expatriado e condenado a arrebentar pedras na marreta em vestes listradas com aquela bola de ferro acorrentada ao tornozelo. Ou talvez nem fosse isso. De repente, um amigo gringo teria dado a ele de presente aquele robusto artefato de metal como um símbolo de resiliência e coragem a quem decidiu tentar a vida em um país distante, tornando-se prisioneiro da própria saudade. E, ao regressar, o primo teria presenteado meus avós com aquele mesmo símbolo de resiliência, pelos oitenta e tantos anos de coragem e luta da dona Maria e do seu Nico.

Até que um dia, quando chegamos da roça para mais uma das visitas quinzenais, a bola de ferro havia desaparecido. Contrariado, vasculhei com os olhos toda a extensão da parede tentando localizar aquele globo que me fazia dar voltas em pensamento por todo o planeta Terra.

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Só depois de alguns instantes examinando entre as panelas percebi que, na realidade, ela ainda estava lá, no mesmo lugar de costume – completamente imóvel, hermética, redonda. É que dias antes meus avós resolveram caiar a casa e, por ser pesada demais para o octogenário casal removê-la, ou simplesmente por não atrapalhar, a esfera acabou recebendo a cal como se já fizesse parte do organismo da parede. Então, como agora estava tingida de branco, tratei de ressignificar o universo existencial da bola de ferro imaginando para ela um passado bem mais pré-histórico: seria, portanto, um ovo de dinossauro que meu avô encontrara nos grotões da Serra do Caparaó enquanto capinava a lavoura.

O fato é que muito tempo se passou desde então. Eu cresci, meus avós faleceram, a casa onde moravam foi desmanchada e meus pensamentos acabaram perdendo o dom de fantasiar a vida.

Mas a lembrança daquele objeto misterioso permanece até hoje sob a poeira mais remota da minha memória. E mais de trinta anos depois ainda me pergunto: onde estará agora a inexplicável bola de ferro? Nos guardados de porão herdados por algum tio? Soterrada em escombros quando a casa foi demolida? Ou no vão quadriculado de alguma outra parede fascinando os pensamentos de mais uma criança?

Na verdade, quando penso sobre isso não me preocupo tanto com as respostas. O que eu gostaria mesmo era encontrar aquele menino que um dia fui para reaprender com ele a ver o mundo com os olhos da imaginação. Mas para o meu desencanto, ele já não existe mais – ou ficou preso no passado onde piratas, aventureiros e descobertas do elo perdido eram bem mais interessantes do que a monótona realidade dos adultos.

Quanto ao objeto, talvez daqui mais uns trinta anos algum cronista mais competente do que eu possa decifrar o mistério e nos dizer, afinal, que bola de ferro era aquela.

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


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