Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
Há vinte anos o esquadrejamento da cidade era diferente do que é hoje. Estabelecimentos comerciais se aglomeravam mais ao centro e as ruas adjacentes eram praticamente residenciais. Até a dinâmica da noite esperafelicense tinha outra configuração. O ponto de encontro para curtir grandes ou pequenas farras era sempre o Calçadão, única área boêmia de Espera Feliz até então. E é por este cenário de fim de século XX que a crônica passeia.
O ano era 1998 e o endereço era a Praça Dr. José Augusto, na rua à direita da Prefeitura Municipal. Em um sábado de outubro, nos fundos de um prédio onde há muito funcionou uma corretora de café – que depois virou marcenaria e hoje é um lojão de roupas no varejo – inaugurava uma boate cuja atmosfera psicodélica fazia jus ao nome que recebera: “3ª Dimensão”.
Em noites de baile – como eram chamados os rocks daquele tempo – a concentração no Calçadão durava até por volta das onze da noite, horário em que a portaria da 3D começava a receber as pessoas. Ao lado da bilheteria, onde dois brutamontes vigiavam a entrada, uma cortina de tecido escuro separava a parte externa da boate e sua pista de dança. O interior tinha o formato de um cubo gigante, com paredes e teto revestidos por preto fosco e grafites abstratos em cores que brilhavam no escuro. À direita, um balcão oval dividia o público dos garçons do bar, que serviam bebidas flamejantes, cuba-libre, vodka e cerveja. À esquerda, uma estrutura metálica com caixas de som era o posto do DJ que, sob uma plataforma a dois níveis acima do chão, comandava uma playlist de gosto eclético dos hits da época.
Normalmente a festa começava com axé – Terra Samba e Araketu –, depois seguia com funk do Claudinho e Buchecha ou Márcio e Goró. Entre um gênero e outro encaixava-se alguma eurodance de sucesso da novela das nove (Corona, Scatman John, Double You) e, lá pelas tantas da madrugada, rolava rock internacional com Red Hot Chili Peppers, Nirvana e Guns and Roses.
Como em toda boate que se preze, no centro do quadrilátero de dança havia o globo luminoso dependurado no teto. Ao girar, simulava uma constelação de minúsculas estrelas refletidas no rosto, braços e pernas do público heterogêneo formado por rapazes de gola pólo, mocinhas de vestido colado, hippies de boutique, caretas de toda espécie e adolescentes tardios de 35 anos. Além dos bastões de laser traçando linhas coloridas no espaço negro do ambiente, sob a luz estroboscópica parecia que todos dançavam em stop motion, como se cada movimento fosse fotografado por câmeras invisíveis.
Somado a explosão de luzes, a fumaça de gelo seco se misturava à fumaça de cigarro – sim, naquela época fumava-se em locais fechados – formando uma nuvem de neon branca cheirando a tabaco e perfume sobre as cabeças que, a certa hora, rodavam feito pião após a ingestão de muitos drinks.
Lá pelas três da madrugada, para aliviar os tímpanos latejando pelo batidão ou pegar ar puro depois da intoxicação involuntária por Gudang Garam e bafos de tequila, muitos iam para fora da boate e aglomeravam-se no beco de acesso à rua, em frente às bombas do posto de gasolina. Ali, casais recém-formados se beijavam enquanto outros resolviam pendengas de ciúmes, garotos de dezessete anos falavam sobre carros e pegações enquanto outros tateavam o muro para se manterem de pé. Na rua, a viatura da PM autuava engraçadinhos que saíam cantando pneus.
Evidentemente não se comparava aos inferninhos de Amsterdã, São Paulo ou Buenos Aires. Mas a Boate 3ª Dimensão preencheu a lacuna dos embalos esperafelicenses de sábado à noite ao trazer para a juventude interiorana, ainda que numa versão mais provinciana, os agitos de costume cosmopolita. Por isso marcou a época de uma geração inteira.
Tanto que no final das baladas, os que resistiam aos exageros da noitada na 3D eram os que pediam bis ao DJ e ao barman – os mesmos que hoje, depois de vinte anos, levam uma vida sossegada, têm trabalho e família e passam noites em claro só se for para cuidar dos filhos pequenos.
Por Farley Rocha.
Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com