Este é um artigo ou crônica pessoal de Enrique Natalino.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
O escritor irlandês Jonathan Swift (1667-1745), em seu livro “As Viagens de Guliver”, afirma, ironicamente, que os governantes deveriam cultivar três qualidades essenciais na vida política: a insolvência, a mentira e a corrupção. Insolvência é a omissão no cumprimento de obrigações e de compromissos; a mentira é o hábito de fraudar a verdade; a corrupção envolve o conluio entre pessoas em posições de poder e indivíduos ou grupos econômicos interessados em enriquecimento ilícito. O sentido da palavra, que vem do latim corruptio, é o de estragar, adulterar e corromper.
A corrupção tem crescido de forma assustadora em meio à pandemia do novo coronavírus no Brasil. Aproveitando-se do aumento dos gastos públicos, da flexibilização das regras de controle e da comoção social, máfias organizadas têm atuado para superfaturar compras de medicamentos, de respiradores e de equipamentos de proteção pessoal. Em Espera Feliz descobriu-se até mesmo um esquema de desvio de pagamentos do Auxílio Emergencial de R$ 600,00 dentro de uma Agência Lotérica. Um caso de corrupção no estado do Amazonas envolvia a compra de respiradores de UTI em lojas de vinhos. No estado do Rio de Janeiro, o Ministério Público e a Polícia Federal desbarataram um esquema monstruoso de desvios com verbas de combate à pandemia no governo Wilson Witzel (PSL), que pode levar ao seu impeachment e à cassação dos direitos políticos.
Estudos estimam que o Brasil perde, todos os anos, um valor correspondente ao PIB da Argentina com desvios governamentais. Segundo a ONG Transparência Internacional, o Brasil caiu da 96ª para a 105ª posição no ranking mundial de transparência na administração pública, o valor mais baixo dos últimos sete anos. De cada R$100,00 em riqueza produzidos, ao menos R$25,00 perdem-se por má-gestão, incompetência e corrupção. Ou seja, o Brasil joga um quarto da sua riqueza no lixo com as ineficiências do Estado e a falta de eficiência no controle dos gastos públicos.
O grau de honestidade de um povo pode ser avaliado por questões históricas e culturais, mas também pela qualidade das instituições e da educação. Quanto mais sólidas as instituições e maior o grau de educação de um povo, menor tende a ser a tolerância das pessoas à corrupção, seja na administração pública, nas empresas, nas relações interpessoais ou dentro de casa. O fortalecimento da sociedade civil é tão fundamental quanto um sistema de justiça eficiente para o combate à corrupção. Sociedades que vivenciam processos acelerados de modernização tendem a desenvolver mecanismos mais eficientes de separação entre o público e o privado. A Constituição brasileira de 1988 trouxe avanços nesse sentido: o fortalecimento dos Tribunais de Contas, do Ministério Público e da independência do Poder Judiciário.
A Constituição de 1988, em seu Art. 37, prevê que a administração pública seja conduzida segundo os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade e da eficiência. Nos Municípios, cabe às Câmaras Municipais fiscalizar os atos do Poder Executivo, os contratos das prefeituras com empresas, as compras governamentais e os gastos com obras públicas. Cabe aos vereadores fiscalizar as contas, apreciar os atos do Executivo e convocar o prefeito e os secretários municipais para prestar esclarecimentos sobre quaisquer assuntos. As Câmaras Municipais recebem ainda representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das entidades públicas.
Em caso de corrupção na administração municipal, cabe aos vereadores solicitar depoimentos e constituir Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), que terão poderes de investigação próprios de autoridades judiciais, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que seja promovida a responsabilidade civil ou criminal dos infratores. Em caso de comprovada prática de crimes de responsabilidade, os vereadores podem, após a aceitação de denúncia, julgar os prefeitos e destitui-los do cargo.
A corrupção, tal como uma moeda, tem duas faces. De um lado, há um corruptor, alguém que pratica o ato de corromper. De outro, há alguém que é corrompido. Não há corrupto sem corruptor. E não há corruptor sem o indivíduo que abre brecha para ser corrompido: ambos são cúmplices. Mais corrupção significa menos dinheiro para escolas e hospitais, menos investimentos e menos serviços públicos como segurança, limpeza, iluminação e calçamento de ruas.
Rui Barbosa (1849-1923) relacionava a política com a capacidade de o homem público colocar os interesses supremos da comunidade acima dos próprios interesses. Ele dizia: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”. Interferências políticas, distribuição de propinas, nepotismo e troca de cargos por votos são formas históricas de corrupção no Brasil. O uso do dinheiro para comprar votos por meio do oferecimento de vantagens ilícitas e ilegais em eleições constitui um dos graus mais elevados de corrupção. A compra de votos frauda a vontade popular e corrompe de morte a democracia.
A corrupção é a principal causa de desvirtuamento da política. Política e politicagem, porém, não são a mesma coisa. A política é a arte de buscar soluções para os problemas coletivos: a educação, a saúde, a insegurança, o trânsito, o desabastecimento de água, a poluição, a pobreza, os baixos índices de educação. A politicagem é a degeneração e a corrupção da política. Busca exclusivamente atender a interesses egoístas, indecentes e desonestos de um indivíduo ou de um grupo. A política busca alcançar um denominador comum que atenda às múltiplas demandas de uma sociedade. Já a politicagem tem um só objetivo: alcançar posições de influência dentro de partidos ou de governos para vender favores, distribuir vantagens e usar da máquina pública em benefício próprio, para enriquecimento pessoal e dos amigos ou para acumular mais poder.
Ao jogar luzes sobre as trevas, a transparência é a maior adversária da corrupção. Nesse sentido, devem ser aplaudidas iniciativas como a Rede de Controle e Combate à Corrupção, unindo o Ministério Público Estadual de Minas Gerais (MPMG), a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Controladoria-Geral do Estado (CGE), visando combater superfaturamentos, contratação irregular de empresas e toda sorte de desvios na prestação de serviços públicos. As comissões de transparência e de controle social, as ouvidorias, as corregedorias, a imprensa livre e as redes sociais são aliadas da sociedade brasileira no combate à corrupção. A única forma de livrar a máquina pública de interesses escusos e grupos criminosos é com informação, boas escolhas nas eleições e combate permanente à impunidade. É nessa direção que devemos avançar.
Por Enrique Carlos Natalino.
Enrique Carlos Natalino é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. É graduado em Direito na Universidade de São Paulo (USP). É professor-colaborador do Instituto de Ciências Econômicas e Gerenciais da PUC-Minas. Foi pesquisador-visitante do German Institute of Global and Area Studies (GIGA), na Alemanha. Co-edita o blog de Política Internacional Fora da Cadência (www.foradacadencia.com).