Enrique Natalino

Este é um artigo ou crônica pessoal de Enrique Natalino.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Espera Feliz, uma jovem senhora de 80 anos

Como as vilas mineiras do interior mais antigas, Espera Feliz alcançou a maturidade e consolidou a sua identidade.

Publicado em 18/09/2019 - 16:02    |    Última atualização: 18/09/2019 - 16:02
 

Estreei minha coluna aqui neste espaço, se não falha a memória, em abril de 2012. Foram dezenas de artigos publicados, nos quais procurei analisar problemas locais, regionais, nacionais e globais. Eram outros tempos muito mais amenos. O foco principal era olhar o global com a perspectiva local. O mundo e o país se transformaram muito desde então. Creio que tivemos avanços muito tímidos.

Depois de alguns anos, retomo de onde parei. A convite do amigo Farley Rocha, participei do fascinante projeto chamado “Prosas da Cidades”, na companhia de talentos jovens escritores de Espera Feliz. Publicamos nossos contos no Portal Espera Feliz, generosidade do amigo Gustavo Almeida, a quem agradeço pela oportunidade de voltar a este espaço. Voltei ao passado e rememorei a história de cidade na perspectiva das estórias que ouvi quando era criança em minha família. Foram boas recordações de tempos mágicos e de pensamentos soltos.

Na nova fase da coluna, pretendo seguir essa mesma direção: falar com leveza da nossa região e com simplicidade e objetividade sobre regionais, nacionais e globais. No primeiro artigo, trago a íntegra do meu depoimento sobre os 80 anos de Espera Feliz, que escrevi em dezembro de 2018, só compartilhado com alguns amigos na época. Creio que permanece bastante atual como descrição da importância da compreensão das nossas origens e do nosso futuro como comunidade de destino.    

“Hoje se comemoram os 80 anos de emancipação político-administrativa de Espera Feliz. Não pretendo escrever uma crônica, mas contar resumidamente um longo caminho que começou no século XIX, com o desbravamento das terras altas do Leste das Alterosas pelos cafeicultores, caçadores e engenheiros da Estrada de Ferro Leopoldina. A prosperidade advinda do café, da ferrovia e da extração de mica fez o pequeno lugarejo de “Feliz Espera”, onde a caça era sempre farta, virar o que hoje é o centro de uma das cidades mais dinâmicas da região.

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O traçado da ferrovia levou ao declínio o núcleo original de colonização, em São Sebastião da Barra. No começo do século XX, com os trilhos, chegaram também o telégrafo, os correios, a luz elétrica, o telefone, o rádio, a imprensa, o cinema, a refrigeração, a medicina, a extração mineral. Veio o declínio dos carros de boi e dos mercadores que varavam o estado por dias e noites em lombo de burro.

A crise de 1929 fez estragos, levando fazendeiros a perder quase tudo. Terras mudaram de mãos e novas famílias vieram. A separação definitiva em relação à já desenvolvida Carangola, em plena ditadura de Getúlio Vargas, era sinal de crescimento, autonomia e prestígio. O boom da mica fez e desfez fortunas durante a II Guerra Mundial. A matéria-prima era insumo estratégico para a manufatura de aviões nos EUA. Os americanos aqui se instalaram para beneficia-la. Embora o conflito fosse distante, houve racionamento de gasolina, querosene, carvão, trigo e açúcar.

Curiosidade para os de fora: a Zona da Mata mineira sempre esteve mais ligada ao Rio de Janeiro do que a Belo Horizonte, capital provinciana, ainda pequena e pouco influente nas regiões limítrofes de Minas. Nos anos 40, com a Rio-Bahia, vieram as vitrolas, os automóveis e maior fluxo de gente e de mercadorias para a capital federal. Nos anos 50, estudantes nascidos aqui começaram a deixar a cidade para completar seus estudos em colégios e em faculdades na região e em outros estados. Muitos saíram para ganhar a vida em São Paulo e Rio.

Nos anos 60, veio a Bossa Nova, o rock, a minissaia, a televisão, os carros grandões, os bailes. Veio também a ditadura, a repressão, a contracultura e a guerrilha do Caparaó, contada hoje como um feito épico de meia dúzia de sonhadores. O segundo grande golpe depois de 29 veio com o fim da Leopoldina, nos anos 70, rotulada pelos militares de antieconômica. Os automóveis, os ônibus e os caminhões tornaram a ferrovia deficitária. Não houve investimento em eletrificação. Os trilhos por onde trafegavam as barulhentas e fumacentas Marias-fumaças foram arrancados do dia para a noite. Foi um baque. Ficou o vazio. Arrancar o trem do mineiro é o mesmo que extrair fora um pedaço do coração. O jeito foi se conformar.

A onipresença da televisão a cores aposentou os cinemas e o rádio, outrora imbatíveis em popularidade. Os bailes também acabaram, substituídos pelos bares. Veio o mineroduto da Samarco e o asfalto ligando a cidade às grandes cidades. As distâncias diminuíram. Nos anos 80, houve a transformação: um novo plano urbanístico e paisagístico, nascendo a nova Espera Feliz, florida e urbanizada.

Encravada na Serra do Caparaó e aos pés de uma das maiores cordilheiras do país, Espera Feliz descobre, nos anos 90, a sua vocação para o agroturismo e para o turismo de aventura. Virou rota do Caminho da Luz. Vieram a internet, a televisão por satélite, a expansão da rede de serviços, os grandes supermercados e as modernas lojas. E chegaram também o trânsito, a insegurança, o inchaço urbano.

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A transição de cidade pequena para média se faz em ritmo acelerado, sem planos, a toque de caixa, rasgando morros e derrubando matas. Aliás, a cidade ainda tem poucas árvores. Deveria plantar mais. Nos últimos anos, viveu um ciclo interrupto de expansão e de modernização, financiado pelo boom do café, tornando-se um dos polos emergentes da Zona da Mata. Ganhou uma nova estrutura para os desbravadores do Pico da Bandeira e uma estrada-parque das melhores do país.

Em paralelo, as famílias se conectaram: a internet aos poucos vai aposentando a televisão. A escola perdeu a influência e o celular smartphone impera absoluto. As amizades que se faziam nas ruas, quintais, calçadões, festas e exposições, ficam cada vez mais raras. As pessoas não gostam tanto de sair e as amizades se tornam cada vez mais virtuais.

Como as vilas mineiras do interior mais antigas, Espera Feliz alcançou a maturidade e consolidou a sua identidade. O café é o símbolo da cidade: trouxe os primeiros colonizadores, trouxe a ferrovia e trouxe a fama nacional. Há muito o que avançar, há muito o que se fazer. Problemas e desafios não faltam. Mas esses 80 anos foram muito bem vividos e contados nas páginas do “Esperafelicense”, nos poemas de Juarez de Oliveira, nas poesias da saudosa Dona Leny Ferreira. Em todos esses registros e na memória popular, pulsa a deliciosa e nostálgica Espera Feliz de outrora, a cidade das manhãs frias, testemunha de todas essas mudanças.

Apesar da sua incontida vontade de crescer, a terra dos antepassados reluta em não perder a sua essência e a sua inocência. O tempo passa devagar, devagar. Os dias são extensos. As pessoas ainda se cumprimentam, passeiam na pracinha e vivem como se fossem do mesmo clã: a família esperafelicense. Os cientistas dizem que quem bebe mais café vive mais. Esse é o seu segredo: a cidade engana o tempo. As terras altas do Caparaó e o ar fresco de todas as manhãs ajudam: aqui ainda há um pouco de tranquilidade. Ainda. Até quando?

Os 80 anos de emancipação passaram como um trem descendo a Serra da Suíça. O trem é um passado longínquo. O presente é o café. O futuro é a tecnologia, o agroturismo, o cuidado com a preservação do que ainda resta da natureza. A cidade pulsa vida, como uma jovem sagitariana que tem mil planos pela frente. Disse que não iria escrever uma crônica, mas menti: Espera Feliz merece.”

Sobre Enrique Natalino

Enrique Carlos Natalino é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. É graduado em Direito na Universidade de São Paulo (USP). É professor-colaborador do Instituto de Ciências Econômicas e Gerenciais da PUC-Minas. Foi pesquisador-visitante do German Institute of Global and Area Studies (GIGA), na Alemanha. Co-edita o blog de Política Internacional Fora da Cadência (www.foradacadencia.com).


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