Minha herança

Quando meu pai se foi, a primeira herança deixada foi um vácuo enorme em minha alma, mesmo já tendo bem mais de vinte anos.

Publicado em 18/04/2017 - 11:58    |    Última atualização: 18/04/2017 - 11:58
 

Em determinado tempo nos chega a pergunta sobre as possíveis heranças as quais temos direito que, em certos casos, nos são impostas de forma surpreendente, quando numa fatalidade perdemos um dos nossos. Esta costuma ser uma experiência duplamente traumática. Mas não quero enveredar por este caminho, meus caros leitores mais vividos, que já experimentaram tais nuanças. Nesta hora não importa o tamanho das posses, mas sim da possessividade diante dos “inúteis pertences”.

Foto: Farley Rocha.

Quando meu pai se foi, a primeira herança deixada foi um vácuo enorme em minha alma, mesmo já tendo bem mais de vinte anos. Não havia sido treinado para viver com aquela aparente ausência. No dia foi até um tanto suave, se assim posso dizer. Pelo seu quadro, imaginávamos que ali o giz não escreveria muitos traços. Era como um grande mestre na escola da vida que, de repente, frente à sala do mundo, resolve fechar pela última vez aquela caixinha de madeira onde guarda o giz, mas sem conseguir apaga…dor. No quadro ficaram as rasuras de seus traços. O velho mestre frente aos seus alunos bate o pó do apagador, seu ser se esvai como aquela poeira branca em outras salas a escrever suas histórias.

Chega a ser quase irônico esta analogia porque meu pai mal sabia desenhar seu nome. Como poderia deixar algo tão forte, profundamente escrito? – neste exato momento meus olhos estão translúcidos e marejados, uma intensa vibração corre pelo meu corpo como se ele, do outro lado, pudesse fazer de mim seu interlocutor, quando aperto as teclas (do) computa…dor ao transcrever estas palavras. Sinto intensamente pela voz do vento que agora corta minha varanda que este homem me deixou notável herança. Se estivesse fisicamente aqui entre nós teria feito em 28 de agosto de 2016 o seu centenário – mas de certa forma faz: 78 anos de um lado e 22 do outro. Era um homem justo e sensato, um sábio, camarada que nunca aprendeu a ler nos papéis, mas fazia com extrema maestria a leitura das paisagens e do tempo. Sabia ler o que não estava escrito ou explícito.

Lembro-me do dia em que fui com ele no mato para tirar cipó macambira. Neste exato instante em que narro, sinto-me novamente um pequeno menino andando pelo terreiro. Era um dia de sábado quando meu pai deu de mão em sua foicinha e, ao sair, leu em meu olhar o desejo de fazer-lhe companhia – ele era mestre em ler nas entrelinhas; penso que tinha olhos de lince para enxergar as janelas da alma. Tirou da cabeça seu inseparável chapéu de lebre, acenou para mim, dei um pulo entre a divisa que separava os dois terreiros e nem perguntei, pois sabia que iria andar pela mata como sempre fazia.

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Ele foi caminhando até deixar a estrada e alcançar as trilhas, como se fossem trilhos numa viagem de trem para dentro da floresta. Andamos pela capoeira até chegar à mata. Antes de entrar tirou o chapéu e se benzeu, como fazendo reverência a todo o mistério que a mata oculta. (Agora me pus a pensar: quando olhamos para uma mata, só vemos a mata como sendo um único organismo em sua perfeição, mas ao adentrá-la descobrimos as mais variadas formas de vida que compõem aquela tela.) Após se benzer, fomos caminhando e me vestia mais de silêncio e medo, o caminhar de meu pai era sorrateiro, pisando levemente por sobre as folhas secas, que estalavam aos nossos pés, eu estava como sempre descalço, o que fazia meu pai se encher ainda mais de cuidado, mostrando-me cada espinho ou toco. Aquilo era o amor dito nos gestos: “cuidado, menino, isto aqui é o espinho grão de galo” (mas parecia espora de galo, não sei por que grão de galo, naquela época nem sabia que galo tinha grão, só sabia que adoravam grãos de milho). Andamos até tomar a vertente do morro (naquela época as terras se dividiam por ver…tente entender, ou pesquise no tal Google, senhor sabe tudo, tomado por esta pouca vontade de pensar). Algumas divisas eram limitadas por vales (imagino quantos vales de lágrimas se deram nas disputas por tais terras).

Bem no cume do morro, lá em cima da vertente, esbarramos com uma trilha. Antes de sentarmos à sombra de uma árvore meu pai fez xixi ao pé de um velho angico quase em decomposição, enquanto eu mijava ao pé da maminha de porca. Ali só se ouvia nossos líquidos caindo por sobre as folhas secas fazendo música aos tantos sons daquela mata. Meu pai escutava um barulho no chão e dizia “isto é andar de uma juriti por entre as taquaras”. De repente um barulho maior “foi um tatu que quase esbarrou em nós”, e explicou “este é um tatu galinha”. Fiquei assim de cara, pois de galinha só tinha pena ao se ver tão assustado com os ilustres invasores de seu território. Ele emendou “tem o tatu testa-de-ferro, o mirim, o rabo-mole…” E comentou “se Lobo e Ferreti estivessem aqui, este aí não escapava ileso”. Dei até graças a Deus pelos cães não estarem nos acompanhando.

Sentamos mais adiante à sombra de um cocodole. Enquanto tomávamos um fôlego ele me mostrava as árvores, dizendo “esta aqui é um angico vermelho. Está ali uma garapa boa para fazer as chedas do carro de boi. Aquela lá é um óleo vermelho, dele fazemos o eixo do carro de boi, pois quando anda exala seu doce perfume”. Mais à frente apontou para uma cabiúna com a qual fazia a canga. Parecendo querer me atrelar àquele legado, descemos mais um pouco até encontrar o objetivo de nossa procura, o famoso cipó Macambira, que era usado para adestrar os animais em nosso sítio, como as éguas Andorinha e Brasília.

Sinto que do meu pai herdei a palavra. Neste mesmo dia, à sombra do velho cedro, após contar-me um tanto de coisas de sua sabedoria, ele me confessou dizendo “é moleque, se eu soubesse escrever ia escrever um livro!” Naquela época, eu estava aprendendo na escolinha da roça minhas primeiras palavras com minha professora Celeste. Bonito né! Minha primeira professora era celeste; a segunda era Glória. Por isso, talvez o caminho fosse mesmo inevitável, herdar a palavra celeste de meu pai, que a cada dia está a caminho da glória. Acho que nem pensei, mas aquelas suas palavras ficaram em mim. Hoje, pai, posso dizer, sem sombra de dúvidas, que todo meu escrito tem sua coautoria. Tua palavra ficou impregnada em meu DNA.

Caramba! Para ser escritor aprendi que não basta herdar apenas a palavra. Meu mundo foi feito de uma teia de palavras tecida na oralidade de meu pai e seus amigos e amigas contadores de causos. Outras vezes por minhas irmãs contando histórias dos livros. Lembro-me ter ganhado um livro de presente do meu pai. Também me lembro de uma bola dente-de-leite, que me deixou radiante em alegria. Chegando em casa, no mesmo dia dei um chute e ela pegou em um rolo de arame farpado embaixo do banco de carapina e saiu rolando meio zonza, parecendo que tinha levado uma pancada na cabeça. Quando fui acolher pra ver o que sentia, percebi que estava perdendo o ar, não quis acreditar, morrera de asfixia, meu único presente durou horas de um dia, uma bola dente-de-leite que deixou em minha alma, um sorriso banguela. Mas eternizou em minha infanta memória.

Como não basta herdar somente a palavra, de minha mãe herdei o silêncio, pois naquele espaço mágico do silêncio mora o mistério. Nas noites a volta do fogão a lenha, quase sempre a cena se repetia, meu pai e mais alguns outros bons conta…dores narravam para nós, espectadores, suas histórias fantásticas. Um deles era seu Salomão, que pedia pouso, e trazia em sua mala as histórias do mundo. Era um poeta andarilho, que não tinha casa nem terra. Por nada possuir, tudo a ele pertencia. Uma noite pernoitava lá em casa, outra nas inúmeras paragens do mundo. Nunca falou de família. Quando papai narrava ele só dizia “sim, senhor!” e balançava a cabeça. Daí a pouco abria seu caderno e recitava uma poesia. E nessas rodas de histórias, vez ou outra alguém trazia uma sanfona, outra hora um violão – agora descobri que o que acontecia em minha casa quase todas as noites hoje tem esse nome bonito e pomposo de “recital” ou “sarau”, nomes sofisticados para coisas tão simples do meu cotidiano.

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Enquanto a palavra ia de boca em boca, meus ouvidos eram pura atenção, querendo não perder um sussurro daquele recital. Meus ouvidos eram por muito de meu pai, já meus olhos sempre procuravam minha mãe na ânsia de que um dia ela iria contar uma história ou tecer um comentário. O ambiente está vivo na minha tela mental, é tão real porque conto de onde estou agora, narrando de lá daquele espaço: agora estou sentado em um velho banco, meu pai está sentado próximo a uma janela de cedro, a sua esquerda; abaixo de seu tamborete tem um furo na parede, por onde entra e sai Roginho, o gato rajado; a janela está fechada porque é noite; perto de mim tem uma escada que dá acesso ao corpo da casa, são poucos degraus que desaguam na salinha, dali há várias portas para várias entradas; do lado direito de meu pai, no fogão a lenha a chama crepita, papai senta perto da banquinha, seu tamborete não tem seu nome, mas é assento cativo, ninguém ousa sentar lá; ao lado do forno do fogão a lenha está a cadeira de minha mãe, também ninguém ocupa aquele lugar, na maioria do tempo a cadeira está vazia, ela fica quase sempre fritando biscoito de polvilho, ou estourando pipoca, passando o café no velho mancebo, abrindo o forno pra ver as batatas… doces lembranças.

O rosto silencioso de minha mãe se limitava a curtos risos no canto da boca, alguns muxoxos, como se dissesse “lá vem este velho com esta história que já ouvi centenas de vezes”. O jeito de minha mãe parecia ser o termômetro que media o ibope daqueles recitais. Seu silêncio era sempre inquiridor, sempre me via obrigado a mergulhar pela tela de seus olhos até cair em um espaço de pura contemplação. Nunca disse que me amava, mas várias vezes passou suas mãos pelos meus cabelos, de manhã tinha uma batata assada antes de ir para a escola; nunca disse “filho querido!”, mas arrumava uma latinha cheia de arroz, feijão inteiro, farinha de fubá e um pedaço de carne maciça ou uma tora de traíra acebolada; nunca disse “filho, você é muito importante para mim!”, mas quando retornava da escola havia guardado um pedaço de puxa, o qual trazia escrito toda a sua doçura; nunca disse “filho, você é lindo!”, mas servia aquele delicioso frango com quiabo e, na entrega do prato, sua mão deslizava suave sobre as minhas enquanto olhava com ternura dentro dos meus olhos.

Sei que minha escrita é feita meio a meio, metade são as palavras do meu pai que guardo nesta caixa de palavras feita por exímio carapina, aquela caixinha de giz que me foi entregue para pintar novos quadros. A outra metade é do que herdei dos olhos cálidos de minha mãe, repletos de silêncio, que me ensinaram a penetrar os jardins da alma, colher rosas e espinhos de cada ser, pois quando colho dores, a essência oferece-me o alívio das flores.

Estas são minhas doces heranças, palavra e silêncio. É como diz a canção do poeta Zeca Baleiro, “palavras e silêncio jamais se encontrarão”. Mas do encontro de meus pais, entre o falar e o ouvir, nasceu este poeta que vos fala, trazendo palavras que nos permitem viajar nos abismos do silêncio de nossas almas.

Por Amauri Adolfo.


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