Amanda Gerardel

Este é um artigo ou crônica pessoal de Amanda Gerardel.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Memórias da velha infância

Afinal, é tão difícil de acreditar que a idade às vezes pode poupar a memória da degradação indigna?

Publicado em 07/12/2021 - 10:13    |    Última atualização: 07/12/2021 - 10:13
 

– É normal nós lembrarmos da nossa infância, doutora? Não me refiro aos jogos de futebol ou às brincadeiras na escola, me refiro às lembranças mais primitivas.

– Conte-me mais sobre isso. – Ela respondeu.

– Estou falando das sensações, flashes da infância, coisas cotidianas de um bebê. Lembro-me de ver minhas gordas perninhas balançando no disco, tentando sair do lugar. Não sei se são memórias dispersas, mas me lembro que eu era esse bebezinho e tinha consciência disso. Meu objetivo era chegar até a porta da sala, sair daquele disquinho e me deitar frente à porta, onde eu enfiaria meus dedinhos nos buracos da soleira e pegaria os farelos dos cupins para mastigar. Ah! Como era boa a sensação de comer àqueles pozinhos, eles dançavam em minhas gengivas desdentadas.

Outro dia estava a me lembrar de quando comecei a dar meus primeiros passos. Lembro-me da incômoda sensação da fralda cheia em minha bunda. Estava tentando alcançar a estante, queria pegar o controle para morder ou trocar o canal, já não me lembro mais. De repente, como que por impulso, arranquei a fralda de mim, mas justo quando estava quase alcançando o bendito controle, não consegui me segurar e acabei fazendo xixi por todo o chão. A poça se alagou abaixo de mim e eu, como se já tivesse a inteligência suficiente para saber que seria reprimida, culpei logo o cachorro pela poça indesejada.

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– Outro dia, digo, a muito tempo atrás, eu costumava fazer um escarcéu na hora do banho. Chorava, brigava e até mordia os meus cuidadores. Então criei uma estratégia quase infalível para me livrar do banho. Disse que não brigaria mais e tomaria meu banho, desde que fosse sozinha, afinal eu já era uma mocinha.

Assim, eu tive a permissão de me banhar sozinha e quando chegava a hora, eu ligava o chuveiro e me sentava no vaso. Por lá eu ficava até que alguém batesse à porta, daí eu corria para o chuveiro, molhava os pés, as axilas e a ponta dos cabelos. Para dar um jeito no resto, eu borrifava um perfume e estava tudo certo. Fiz isso durante meses, até que me deu uma infecção na perseguida (você entende o que quero dizer, não é, querida?), e o médico disse que era por falta de higiene íntima. Depois disso, nunca mais me deixaram tomar banho sozinha.

A médica me olha por cima das anotações e somente diz “prossiga”.

– Eu realmente sinto como se as lembranças da infância tivessem acontecido ontem. A comida mole para não me engasgar, a sensação da fralda me apertando, a dificuldade ao caminhar. Como posso ter essas sensações tão nítidas?

A doutora então pausa suas anotações e começa a dizer:

– Bem, dona Antônia, é normal confundir sensações, uma vez que sua condição de infância, refletem sua atual condição.

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– Como assim, Dra?

– Visto sua idade avançada, sua atual debilitação, é bem possível que alguns episódios vívidos de sua infância, tenham ocorrido, na verdade, na semana passada, como, por exemplo o episódio do xixi, que ocorreu a três dias atrás na sala de jogos. Ou sobre os banhos supervisionados que a senhora toma todos os dias.

Não consegui acreditar nas palavras daquela psicóloga, tamanha sua falta de profissionalismo. Sei muito bem das minhas condições, mas dizer que estou senil ao ponto de confundir memórias antigas com meu passado recente? Posso estar fazendo hora extra no mundo, com meus noventa e nove anos, mas sei muito bem a diferença entre uma fralda de bebê e uma fralda geriátrica.

Saí do consultório decidida a não mais me consultar com essa psicóloga, certa de que de agora em diante as minhas recordações da infância ficariam muito bem enterradas em minha mente. Afinal, é tão difícil de acreditar que a idade às vezes pode poupar a memória da degradação indigna?

Ah! Não confio em mais ninguém, agora o que me resta é voltar para meu quarto com minhas memórias e aquele pozinho de cupim que tanto amo mastigar!

Por Amanda Gerardel.

Sobre Amanda Gerardel

Provavelmente a pessoa mais perdida e desequilibrada desse Portal. Seus textos refletem isso, não crie expectativas, apenas leia, reflita e aprecie o que a loucura pode gerar no fenômeno da escrita.


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