Este é um artigo ou crônica pessoal de Amanda Gerardel.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.
São 02:00 da manhã e estou fazendo o jantar. Aqui em casa é assim, bateu a fome a gente come. Não seguimos muitas regras, quando deu a hora do jantar estávamos batendo papo, jogando videogame ou lendo um livro.
Enfim, estou eu cozinhando de forma desorientada um arroz para comer com ovo, já que o sono bateu forte e não há tempo nem paciência para ferver o feijão.
Eis que me distraí e aconteceu um desastre bem comum a uma mulher que não tem tino para a culinária: o pote de tempero industrializado com gosto de sal amargo, que mataria um hipertenso só de olhar, caiu ao chão.
Esse pequeno deslize, que poderia ter me tomado de raiva, despertou uma lembrança terna da infância, a bolsinha da dona Rita.
Dona Rita era uma senhora que trabalhou em minha casa a muitos anos atrás. Ela devia contar com seus 60 anos, era pequenina e gordinha, andava com seus cabelos sempre muito bem alinhados. De sua aparência não me lembro bem, mas o que ficou na minha memória foram as lembranças de sua comida perfeita.
Lembro-me que dona Rita tinha um ritual: todos os dias, após lavar as pilhas de louças, ela se dirigia ao armário e retirava item por item, sempre na mesma ordem. Arroz, feijão, carnes, verduras e o limão colhido do pé mais cedo, pois o suco era sempre fresco. Terminado de enfileirar os suprimentos para o delicioso banquete diário, ela se dirigia aos fundos da cozinha, onde guardava sua pequena bolsinha florida, e retirava um pequeno pote. Sobre esse pote, muitos mistérios e magias eu conjecturava.
Dona Rita começava então seu encantamento na cozinha. Lavava o arroz, cozinhava o feijão, picava as verduras e legumes, fritava as carnes, e o Gran finale: abria o pote, pegava uma colher e retirava dele um pó de cor bem verdinha, com cheiros deliciosos de orégano e alho. Salpicava cuidadosamente esse pozinho por cima das comidas, e o cheiro tomava conta do ambiente de imediato.
Nesse exato momento a magia acontecia, minha barriga ganhava vida e, como um leão enjaulado, rugia de fome. O pó funcionava mais que Biotônico Fontoura!
Após ela terminar de fazer o almoço, nos sentávamos na cozinha mesmo, e apreciávamos a magia de dona Rita, viva em cores e sabores. Sobre esse pozinho, ela dizia ser tempero, mas eu tinha certeza que era apenas um disfarce para que eu não descobrisse sua verdadeira identidade, dona Rita era uma feiticeira, e das mais experientes.
Ao fim do expediente, a boa senhora ia novamente aos fundos da cozinha e guardava cuidadosamente o potinho mágico. Retirava o lenço de sua cabeça e o dobrava rigorosamente, pegava sua bolsinha e colocava no ombro, me dava um beijinho no rosto e dizia: “até amanhã Amandinha”.
Muitos foram os banquetes mágicos criados por dona Rita, muitos pozinhos diferentes ela usou: tinha pozinho para os bolos e doces, pozinho para as carnes e legumes, pozinho até para o feijão.
E em um dia que deveria ser como outro qualquer, mas me marcou profundamente, os pozinhos se acabaram.
Só voltei a ver dona Rita em meu aniversário de oito anos, quando ela bateu palmas no portão, me desejou os parabéns e entregou um presente. Corri para abrir o pacote, acreditando ser um pote de pozinho mágico. Mal pude crer quando vi que, em vez de me passar o legado da magia, dona Rita se confundiu e tentou me passar o legado da mulher, na forma de um jogo de panelinhas de plástico.
Bem, meu arroz acaba de queimar. Por isso e pelo desastre com meu pote de temperos, podemos perceber que essa magia dona Rita não conseguiu concluir com êxito.
Ps. À adorável dona Rita, onde quer que a senhora esteja (espero que ainda viva e bem)! Nunca me esquecerei da delícia que é sua comida.
Amanda Gerardel
Provavelmente a pessoa mais perdida e desequilibrada desse Portal. Seus textos refletem isso, não crie expectativas, apenas leia, reflita e aprecie o que a loucura pode gerar no fenômeno da escrita.