Cidade Submersa – Capítulo XV – Um Carnaval em Tempos de Recomeço

Capítulo XV da série de reportagens documental "Cidade Submersa".

Publicado em 29/09/2020 - 11:43    |    Última atualização: 29/09/2020 - 11:43
 

CAPÍTULO XV

UM CARNAVAL EM TEMPOS DE RECOMEÇO

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2020 foi um ano que se iniciou meio às avessas para Espera Feliz. Em condições normais, o retorno de férias e os dias quentes de janeiro resultariam em energia para o trabalho e a busca pela realização de sonhos. Mas com o desastre daquele final de verão até os desejos de réveillon tiveram que ser adiados. Por isso, o CarnaFeliz – o carnaval oficial da cidade – teve que ser suspenso.

Permaneceu durante algum tempo suspenso no ar da cidade uma aura difícil de descrever. A origem desse sentimento foi o pavor inicial com a chegada da enchente, que depois se desdobrou em espanto diante da impensável devastação que ela causou. Na sequência, juntou-se o esgotamento pelo trabalho de reconstrução e pelos enormes abalos emocionais ainda muito recentes. Ao longo de um mês não havia como falar de outra coisa.

Foram tantos os traumas particulares que, somados, contabilizavam o drama de uma população inteira. As cenas de correntezas barrentas envolvendo casas e ruas, das calçadas apinhadas de escombros e destroços, e da lama recobrindo tudo por toda parte haveriam de continuar em flashes de assombro nos pesadelos de muitos desde aquela noite. Principalmente as milhares de pessoas que tiveram brutalmente destituídas dos próprios lares todas as conquistas de uma vida inteira.

Segundo a Secretária Municipal de Governo e Gestão Vera Lúcia Grillo Ramos, constatar que uma enorme parcela da população havia sido atingida foi um momento de profundo impacto para todos. Era como se, inesperadamente, Espera Feliz tivesse descarrilado de seus trilhos. Diante disso, apenas a imensurável união entre as equipes do poder público e os milhares que se voluntariaram permitiu que a superação se tornasse possível. Ainda que a cidade refletisse por muitos meses as marcas da tragédia, o povo, de alguma forma, saiu mais forte desta extrema experiência – e também agradecido, por não ter ocorrido nenhuma vítima fatal.

E talvez tenha sido justamente esta força descoberta no limite que tenha motivado a realização de uma festa no final de fevereiro. Não para se ocultar o sofrimento que todos tiveram, mas para virar uma página borrada pela catástrofe e recomeçar um capítulo, agora, sob chuvas de confete. Em menos de uma semana, foi organizado um carnaval alternativo aos moldes das antigas folias que contagiaram a Espera Feliz de outros tempos. De certa maneira, era como se a cidade estivesse, simbolicamente, recomeçando do zero.

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Entre os dias 21 e 24 de fevereiro, núcleos festivos ocorreram em diversos pontos do centro. O tradicional Bloco do Pijama retornou à ativa se concentrando no Bar do Alemes, mesmo estabelecimento que, semanas antes, havia sido arrasado pelas águas do Rio São João. A banda Help Rock fez duas apresentações num palco improvisado na Praça Pedro de Oliveira, e o grupo de ciclismo Elo das Montanhas fundou um novo bloco de carnaval chamado Coffeeliz, em parceria com o Coffee Beer Petiscaria, que contou com várias horas de marchinhas executadas pela banda local Pedro Bernardes.

Organizado pela própria comunidade, este momento carnavalesco, além de servir como um alento de alegria após um longo período de tristezas, também prolongou o sentimento solidário despertado em todos os esperafelicenses. Cada atração promoveu campanhas de arrecadação de donativos e fundos para auxiliarem os mais prejudicados pela grande enchente de 2020.

Certamente no futuro, bem mais do que as cenas de horror, o que ficará na lembrança deste período particular da história da cidade será o espírito de humanidade experimentado por todos, como uma fábula simbolizando um aprendizado que atravessará de geração em geração.

UMA FÁBULA NA MEMÓRIA DA CIDADE

A vida era feita de sol com sua luz irradiando a rotina. Mas como setas cruzadas em direções imprevisíveis, junto à escuridão da noite uma chuva torrencial abalou todas as certezas. Um amanhecer completamente desconhecido estava para surgir.

Então foi quando, bem no meio da madrugada, uma enxurrada de medo e espanto assolou a todos, demolindo paredes e sonhos, devastando ruas e conquistas. Nada mais seria como antes.

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Mas justamente em meio ao caos e a desordem causados pela catástrofe é que algo puro mas ao mesmo tempo grandioso se revelou. No fundo da lama sedimentada na alma e no chão da cidade germinou uma semente com flores de amor, união e solidariedade.

E assim se cumpriram os ciclos inevitáveis da vida: como a noite se decompondo em dia, a chuva se dissipando ao sol, a tristeza vencida pela esperança e alegria.

CRÔNICA DE UMA TRAGÉDIA SUPERADA

É natural o sentimento de derrota quando nossos sonhos se perdem nas correntezas de um rio. Primeiro vem a sensação de impotência e desespero; depois a dor que só as grandes perdas nos proporcionam; por fim vem o desânimo perante a batalha aparentemente perdida.

Realmente não é fácil ver os planos reduzidos a escombros e, sabendo que a vida continua, ter de encarar o desafio de recomeçar do zero, tijolo a tijolo. Afinal, desmoronam junto às nossas lutas muitos anos de suor e lágrimas que edificaram nossas conquistas. E o simples ato de projetar o futuro é como estar diante de um obscuro e desconhecido vazio.

Porém, submersos na lama de nossos temores e angústias, não percebemos que é de grandes tragédias que se faz a história do mundo, impulsionando-nos para frente e nos fortalecendo para novas experiências.

Foi assim que chegamos até aqui, depois de fazermos da dura rocha nossas próprias casas, do perigoso fogo nosso meio de sobrevivência e da crueldade das guerras a importância de se buscar a paz. Porque somente o ser humano tem a exclusiva capacidade de transformar crises em oportunidades e fazer de seus piores motivos de tristeza mil razões para novamente se alegrar.

É por isso que continuar sonhando é preciso, assim como pôr em prática tudo aquilo que idealizamos. Se para apreciar jardins é necessário plantar cada semente, só daremos a volta por cima se sujarmos as mãos com o barro. Porque se altos e baixos fazem parte da vida, ficar parado não passa de uma infeliz escolha.

Portanto, em vez de destruição e ruínas, acreditemos que a lição das tragédias sejam a esperança e o desejo de reconstruir, fazendo de nossas próprias perdas o alicerce de futuras vitórias.

Afinal, se não fossem os desastres naturais do planeta, jamais teríamos montanhas para nos encantar de beleza.

FIM

Com carinho, Farley Rocha

APÊNDICE

Cidade Submersa – Crônica da Grande Enchente de 2020” é um relato de cunho jornalístico sobre a maior inundação já vista na cidade mineira de Espera Feliz. A princípio, este trabalho reconstrói os momentos vividos pela população e pelas autoridades locais antes, durante e depois que as águas tomaram a cidade. Mas, a longo prazo, servirá de registro histórico dos bastidores que envolveram este episódio marcante.

Esta reportagem documental resultou de um robusto e detalhado trabalho de 4 meses de pesquisas sobre o ocorrido e cerca de 40 entrevistas formais e informais com quem teve experiências ligadas ao desastre. Por isso, todas as cenas relatadas aqui são do ponto de vista de quem vivenciou esta história por dentro.

AGRADECIMENTOS

Erika, por todo amor, apoio e compreensão;

Alba, por todo o incentivo;

Gustavo Almeida, pela confiança e por acreditar neste projeto;

João André Simiquelli, por toda a dedicação ao dar voz ao texto;

Escritores João André Simiquelli, Amanda Gerardel, Mara Rubia, Pricila Magro e José Fernandes, pelo incentivo e ombro amigo;

Elienay Hemerson, pela produção dos vídeos de divulgação e pelas valiosas dicas;

A todas as vítimas, voluntários e profissionais da linha de frente que gentilmente concederam entrevistas para a coleta de informações;

A todos que disponibilizaram fotografias de seus acervos pessoais sobre a enchente;

A todos os apoiadores que acreditaram na importância e na realização deste projeto.

DEDICAÇÃO

Dedico este trabalho a todas as famílias que, direta ou indiretamente, foram afetadas pelo desastre, bem como aos profissionais e voluntários que, juntos, somaram forças para o amparo à população e a reconstrução da cidade.

FICHA TÉCNICA

Autor: Farley Rocha – professor e cronista

Narração (versão audiobook): João André Simiquelli

Publicação: www.portalesperafeliz.com.br

Método de publicação: 15 capítulos diários publicados entre 15 e 29 de setembro de 2020.

ENTREVISTADOS (vítimas, voluntários e profissionais da linha de frente)

Julierme Machado Christoffori – Tenente da Polícia Militar de Espera Feliz

Elizama de Lima Teixeira de Assis – Servidora Pública Municipal

Wagner Villa Verde – Secretário Municipal de Meio Ambiente e Defesa Civil

Michel de Assis e Silva – Secretário Municipal de Agricultura

Rubia Simiqueli Cabral – Secretária Municipal de Saúde

Isabella Escoralique Araujo – Coordenadora da Defesa Civil

Alba Barbosa – Secretária Municipal de Assistência Social

Silvério Lacerda Fernandes – Diretor Executivo da Associação Comercial de Espera Feliz

Rosiane Souza Martins – Psicóloga da Prefeitura Municipal

Patrícia Thomaz Verly – Professora, residente em local afetado pela enchente

Meire Fófano – Asserora de Comunicação da Prefeitura Municipal

Rubens Cabral de Almeida Júnior – Engenheiro Civil da Prefeitura Municipal

Lukas Lugão – Músico, residente em local afetado pela enchente

Kevin Heitor – Servidor Público, residente em local afetado pela enchente

Vinícius Bigonha Cancela Moraes de Melo – Promotor da Comarca de Espera Feliz

João Carlos Cabral de Almeida – Prefeito Municipal em exercício

Vera Lúcia Grillo Ramos – Secretária Municipal de Governo e Gestão

Leone Maia – Músico, voluntário nos trabalhos de limpeza da cidade

Cláudio Maia – Instrutor de artes marciais, voluntário nos trabalhos de limpeza da cidade

Alencar de Oliveira – Soldador, residente em local afetado pela enchente

Cristiano Zanirate – Representante Comercial, testemunha e residente em local afetado pela enchente

(e outras duas dezenas de pessoas que prestaram informações importantes desde à enchente)

BASTIDORES

– A composição deste trabalho, entre pesquisas, entrevistas e processo de escrita, ocorreu ao longo de 122 dias, com rascunhos esboçados à mão que somaram quase 3 cadernos e três canetas esferográficas pretas.

– A primeira redação foi toda produzida ao som de Milton Nascimento, Caetano Veloso, Belchior e Chico Buarque de Hollanda.

– Ao todo, foram redigidas 22.862 palavras, desde o título até a última frase.

– Os títulos do primeiro e último textos que compõem este relato foram livremente inspirados na obra “Crônica de Uma Morte Anunciada”, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, a quem devo reverências de um profundo admirador e meu mestre absoluto no universo da escrita.

Sobre o autor

Farley Rocha é professor de Língua Portuguesa e Literatura das redes pública e privada de Espera Feliz. É cronista do site PortalEF e tem dois livros publicados, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015).


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