Cidade Submersa – Capítulo IV – Tarde de Sexta-feira, 24 de Janeiro

Capítulo IV da série de reportagens documental "Cidade Submersa".

Publicado em 18/09/2020 - 11:00    |    Última atualização: 21/09/2020 - 10:18
 

CAPÍTULO IV

TARDE DE SEXTA-FEIRA, 24 DE JANEIRO

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Durante toda a tarde de sexta-feira 24 de janeiro intensificou-se o processo de monitoramento do bairro João Clara e de outras áreas da cidade próximas ao rio. As chuvas que caíam nas cabeceiras do Rio São João e do Rio Caparaó tornavam-se cada vez mais fortes. Boletins meteorológicos informavam alerta vermelho para a região naquele dia. E quanto mais passavam-se as horas, mais o leito do rio recrudescia o transbordamento, centímetro a centímetro.

A esta altura, a Defesa Civil também se desdobrava no monitoramento da Rua Nova, da avenida Beira Rio, da rua Major Pereira e dos bairros Santa Inês, Santa Cecília e Patronato – ao mesmo tempo que acompanhava possíveis deslizamentos de terra nas partes altas do perímetro urbano.

Até o final daquela tarde úmida e cinzenta, diversas famílias, principalmente residentes do Bairro João Clara, já estavam abrigadas ou no Seminário ou na casa de parentes. Ao longo do dia a inundação foi tomando conta de várias outras ruas e moradias. Neste mesmo período, organizado pelas equipes da prefeitura, iniciou-se uma campanha de doação de roupas e alimentos, e uma frente de voluntariados foi formada para auxiliar o número de desabrigados e desalojados que não parava de subir.

Devido às áreas já parcialmente afetadas pela inundação, e outras que no decorrer daquela noite poderiam vir também a ser alagadas, toda a população de Espera Feliz se colocou em alerta. Pois mesmo que muitos morassem distantes do rio, haviam parentes e amigos residindo em locais que poderiam vir a ser atingidos.

No entanto, exceto pelos pontos já afetados até o final da tarde, para a maior parte das pessoas o movimento da cidade transcorria sem grandes alardes, como num dia normal de trabalho – condição que, horas depois, haveria de mudar drasticamente.

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O 2º DESLIZAMENTO DE ENCOSTA NA RUA CARANGOLA

Por volta das 19 horas, a Coordenadora Isabella Escoralique Araujo e os Secretários Alba Barbosa e Michel de Assis e Silva se diligenciaram à rua Carangola, à altura da esquina com a Major Pereira, para atenderem outra ocorrência de que parte de um morro ameaçava desmoronar.

Com as chuvas em demasia dos dias anteriores, e que até aquele momento não tinha dado tréguas, haviam sérios riscos de desabamento de diversas casas construídas encosta acima. Pois naquele ponto da rua Carangola, além de ser bastante íngreme, o solo é constituído por muitas rochas soltas. Sempre que chega a estação das águas não é raro haver no local quedas de barranco e o deslocamento de grandes pedras, devido ao charco absorvido pela terra.

Segundo relatam a Secretária Alba Barbosa e a Coordenadora Isabella Escoralique, os primeiros procedimentos consistiram em alertar e evacuar, em caráter de urgência, todos os moradores do local, conduzindo-os em segurança ao abrigo do Seminário ou à casa de familiares. A Secretária Alba Barbosa conta que, diante do perigo iminente, tiveram que tomar decisões rápidas e assertivas, ao mesmo tempo que precisavam agir com serenidade e competência. Como ela mesma diz, naquele momento estavam lidando com vidas, emoções e sentimentos de diversas pessoas que se viam obrigadas a abandonarem seus lares sem que pudessem salvar quase nada.

Entre os moradores, havia um casal de idosos que, a princípio, resistiu ao grave alerta de perigo. Por algum motivo ignoravam o real potencial de risco de terem sua casa desmoronada. Foi preciso empenho, empatia e autoridade por parte das equipes da Assistência Social e da Defesa Civil para convencê-los a saírem apenas com a roupa do corpo.

De acordo com Alba, esta ação precisa e eficiente na rua Carangola foi providencial. Pois, instantes depois que todos os moradores desceram em segurança, parte do morro veio ao chão sem que ninguém fosse vitimado.

(Desabamento de encosta na rua Carangola / Foto: Albelane M. Chambela)
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TROMBA D’ÁGUA OU CABEÇA D’ÁGUA?

Por um costume cultural, os residentes do entorno da serra nomeiam os grandes volumes concentrados de chuva de “tromba d’água”. Em vários pontos da região é possível avistar imensas clareiras abertas pelo desabamento de encostas, cicatrizadas por centenas de metros no corpo das montanhas. A exemplo das cordilheiras da Pedra Menina, da Vargem Alegre e de Alto Caparaó, que apresentam violentos rasgos verticais com rochas e solo expostos por entre a vegetação de mata virgem. No vocabulário corrente, tais marcas são o resultado do que chamam de trombas d’água.

No entanto, este fenômeno se refere mais à concentração de chuvas sobre um determinado ponto do mar ou de um grande rio, podendo provocar até mesmo a ocorrência de ciclones e tornados.

De acordo com especialistas, conceitualmente o evento que gerou a grande enchente de 2020 em Espera Feliz denomina-se “cabeça d’água”. Isto é, como as nascentes do Rio São João e do Rio Caparaó brotam das montanhas da região, as excessivas precipitações provocadas pela Zona de Convergência do Atlântico Sul se concentraram justamente em suas cabeceiras – daí a origem do nome – formando um volume de água desproporcional às suas vazões.

Somado a isto, Espera Feliz e arredores já vinham de um longo período chuvoso desde o mês de novembro do ano anterior, trazendo à hidrografia do São João níveis acima do normal. Por isso, bastou que houvesse uma maior incidência de chuva sobre suas nascentes para que o rio transbordasse, gerando todo o caos e transtorno que o decorrer daquela noite de sexta-feira desencadearia.

(Cordilheira da Pedra Menina – divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo)

NOTÍCIAS DE UMA CABEÇA D’ÁGUA EM ALTO CAPARAÓ

A noite de 24 de janeiro iniciou sob a mesma chuva que encharcava a cidade desde o início da manhã. De acordo com o Tenente Julierme Machado Christoffori, comandante do Quartel da Polícia Militar de Espera Feliz, o destacamento policial, que já vinha acompanhando o trabalho da Defesa Civil no monitoramento das áreas de risco e avaliando boletins emitidos por municípios vizinhos sobre suas condições meteorológicas, intensificou ainda mais sua atuação junto à população e os agentes da prefeitura, percorrendo os pontos de inundação e operando na organização dos abrigos.

Segundo o Tenente, viaturas circulavam a cidade alertando quanto aos perigos da enchente e orientando que todos se mantivessem em local seguro, ao mesmo tempo que policiais estabeleciam a ordem das ruas frente à possibilidade de um eventual desastre.

Enquanto isso, moradores das áreas adjacentes ao rio que ainda não haviam sido inundadas passaram a tarde e as primeiras horas da noite de sexta-feira fazendo o que comumente chamam os habitantes locais em épocas de enchentes de “subir os móveis”.

Normalmente tal medida seria suficiente para reduzir os danos causados, pois raramente o transbordamento do Rio São João ultrapassou mais do que um metro no interior das casas. Por isso, muitos dos que naquela noite estavam nos bares e restaurantes da cidade, em maioria localizados em áreas consideradas seguras até então, começaram a receber ligações e mensagens pelo celular de parentes e amigos solicitando ajuda para subir seus móveis.

A esta altura, nas conversas da população do centro a enchente deixou de ser assunto de mera curiosidade para passar a ser tratada como possibilidade real. Residentes da Praça Dr. José Augusto, do bairro Santa Cecília, das ruas Henrique Gripp Filho, Major Pereira, João Alves de Barros e região do antigo Laticínio – todos localizados nas proximidades do rio onde o leito é mais profundo e, portanto, ainda não havia extrapolado a calha – colocaram-se em absoluto alerta para o que poderia acontecer nas horas seguintes. Subindo móveis e retirando veículos das garagens.

Por outro lado, donos de lojas e de empresas que já haviam encerrado o expediente, considerando antigas estatísticas de níveis máximos de outras enchentes, preferiram aguardar o comportamento das águas antes de tomarem qualquer decisão para resguardarem seus negócios. Mas o que ninguém poderia prever é que as chuvas do verão de 2020 superariam qualquer expectativa.

Até que por volta das 20:30 horas, a população de Espera Feliz começou a receber e compartilhar fotografias, vídeos e áudios de WhatsApp enviados por moradores da cidade de Alto Caparaó, relatando que uma cabeça d’água havia acabado de cair na serra e já transbordava o riacho de pedras que atravessa a cidade. Por este motivo, dentro de poucas horas um enorme volume de água jamais visto desembocaria, pelo curso do Rio Caparaó, no Rio São João cujo encontro se dá bem no meio das áreas habitadas de Espera Feliz.

Imediatamente as autoridades do município de Alto Caparaó comunicaram oficialmente o ocorrido à Defesa Civil e à Polícia Militar de Espera Feliz, que rapidamente redobraram seus esforços para alertarem a população e otimizarem o processo de evacuação das localidades mais vulneráveis.

Segundo a Assessora de Comunicação da Prefeitura Municipal Meire Fófano, foi organizado uma estratégia para manter a população informada sobre quaisquer eventualidades no decorrer daquela noite e das semanas seguintes. Por isso, através do contato direto com a Defesa Civil, Secretaria Municipal de Ação Social, Secretaria Municipal de Governo, Polícia Militar, Instituto Climatempo e o Prefeito João Carlos Cabral de Almeida, a Assessoria de Comunicação expedia e transmitia boletins informativos e comunicados oficiais através das redes sociais da prefeitura e pela Rádio Café FM 98,9.

Também foram acionados carros de propaganda volante para percorrerem as áreas de risco reportando em alto-falantes as notícias que chegavam de Alto Caparaó. O objetivo era prevenir a população quanto aos riscos de inundação e orientar sobre possíveis procedimentos de segurança, caso fosse necessário.

Mesmo para os que não acreditavam, pouco antes da meia-noite a enchente anunciada já dava sinais de que seria a maior e mais destruidora dos últimos cem anos.

(Enchente em Alto Caparaó-MG)

Sobre o autor

Farley Rocha é professor de Língua Portuguesa e Literatura das redes pública e privada de Espera Feliz. É cronista do site PortalEF e tem dois livros publicados, Mariposas ao Redor (2011) e Livre Livro Leve (2015).


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