Farley Rocha

Este é um artigo ou crônica pessoal de Farley Rocha.
Não se trata de uma reportagem ou opinião do Portal Espera Feliz.

Brasinha*, um livro que chegou ao fim

O Brasinha talvez fora o espaço mais democrático que Espera Feliz já teve.

Publicado em 23/02/2018 - 13:32    |    Última atualização: 23/02/2018 - 13:32
 

À memória de Dilson Araújo Porto, o “Nenê do Brasinha” – fundador

Se toda cidade tivesse sua história contada em um livro, provavelmente boa parte seria narrada pelos seus bares. Pois neles é onde atua a maioria de suas personagens, sejam elas protagonistas ou figurantes, mocinhos ou vilões, nobres ou mendigos, damas ou meretrizes, loucos ou intelectuais que, juntos, compõem enredos fabulosos que começam e terminam no fundo de cada copo, escrevendo seus capítulos entre risos e conversas desde as tardes mais sossegadas até o varar das madrugadas mais badaladas.

No nosso caso, o bar que esteve presente em quase meio século da nossa história – e que relata com propriedade os acontecimentos públicos e privados – é o emblemático “Bar e Restaurante Brasinha”, que pulsou firmemente desde 1972 no coração de Espera Feliz e presenciou as principais transformações da cidade.

No passado, ele viu de perto o declínio das mineradoras locais de caulim e malacacheta e amparou os recém-desempregados que se consolavam em seus balcões. Mas também viu a ascensão das (já extintas) empresas de laticínios e sediou comemorações homéricas dos que conseguiram trabalho durante o ciclo do leite na região. Acomodou em harmonia políticos derrotados de eleições passadas na mesma mesa onde celebravam os vitoriosos adversários e apaziguou com cerveja e vinho o espírito dos eleitores ainda inconformados. Assistiu à desarticulação da bucólica linha ferroviária que passava à sua porta e testemunhou a chegada do progresso pelos calçamentos de paralelepípedos, pela construção do Calçadão e pelos prédios com mais de três andares erigidos nas ruas centrais. Desde que fora inaugurado, este bar de meia idade acompanhou de perto a rotina de uma vila do interior de Minas que, aos poucos, foi tomando ares de uma pequena cidade globalizada.

O Brasinha, que nos primórdios escandalizava os mais conservadores com os flamejantes capetinhas ilustrando o toldo sobre suas entradas, também foi um restaurante que, durante muitos anos, manteve o status de “nº 1” e de “1ª classe” por ser o único a trazer para os cardápios da cidade opções que só se tinha acesso nas capitais distantes. Por isso, não só os almoços de domingo se tornavam verdadeiros banquetes em suas mesas, como também a noite dos namorados era sempre mais romantizada, por servir jantares especiais e drinks elaborados. Há que se lembrar também dos sorvetes Kibon quando eram novidade, que fascinavam a molecada ao ver o hipnótico freezer ao passar pela calçada.

Continua após a publicidade...

Como observam os boêmios mais antigos da cidade, a trajetória deste ilustríssimo estabelecimento se dividiu em duas fases: o Brasinha da “velha-guarda” e o Brasinha “moderno”. A primeira, considerada por muitos a sua versão clássica, trazia no desenho de seu conjunto o aspecto dos bares de antigamente, com portas de aço e grandes janelas de madeira pintadas em marrom tabaco, contrastando com o amarelo ocre das pedras São Tomé que revestiam sua fachada. No interior, além das cadeiras e mesas de carpintaria forradas com toalhinhas quadriculadas, os bancos fixos e os balcões em L ficavam dispostos do lado esquerdo, onde as prateleiras ostentavam uma refinada variedade de licores e destilados. E as paredes, desde o saguão até o refeitório, eram cobertas por um rústico revestimento de bambus envernizados – os mais velhos referem-se aos episódios antigos da cidade como “na época do Brasinha de bambu…

Já sua segunda fase data do início do século XXI, depois que passou por uma reforma completa que revitalizou todos os detalhes de suas instalações. As empoeiradas portas de aço e janelas de madeira deram lugar à elegantes portas de correr em blindex que, cá de fora, permitiam avistar o teto rebaixado e as luminárias de luz baixa clareando seu novo e caro mobiliamento em ferro trabalhado. Os freezers eram estilizados com estamparia de cervejas importadas e por trás do novo balcão em fórmica planejada atendiam os garçons com uniformes personalizados – o novo logotipo manteve a ideia das chamas, mas retirou os polêmicos capetinhas desenhados. O Brasinha de então refletia a imagem de um bar mais contemporâneo, denotando certa pompa e requintes de sofisticação. Mas para os fregueses mais saudosistas, os anos de ouro do Brasinha findaram quando a mítica decoração de bambus foi retirada, descaracterizando a maior parte do seu charme.

Seja como for, o Brasinha talvez fora o espaço mais democrático que Espera Feliz já teve, recepcionando seus frequentadores em igualdade de distinção e respeito, fossem eles pretos ou brancos, ricos ou pobres, doutores ou analfabetos, homens ou mulheres, adultos ou crianças, transgêneros ou heterossexuais, forasteiros ou nativos, jovens ou idosos, caretas ou doidões. Foram muitos entre anônimos e ilustres que redigiram em suas páginas histórias tanto dramáticas e comoventes quanto patéticas e engraçadas. Foi onde muitos amores surgiram e muitos casamentos terminaram. Onde muitas amizades nasceram e muitos inimigos brigaram. Onde muitos gargalharam de alegria e muitos choraram embriagados. Onde muitos comemoraram a vida e muitos tiveram as mágoas afogadas.

É por isso que a história desse bar se confunde com a da própria cidade, pois em quase cinco décadas de existência ele foi, ao mesmo tempo, espectador e participante de nossas vidas, fosse nos almoços com a família, nas comemorações de aniversário ou nas derradeiras bebedeiras dos carnavais, réveillons e dos mais corriqueiros feriados, sextas e sábados. Mas agora, após 46 anos de histórias bem contadas, a notícia de que o Brasinha acaba de fechar para sempre suas portas nos traz a mesma sensação de quando chegamos ao final de um livro que nunca mais poderemos reler.

Pois as últimas páginas escritas pelo Brasinha terminaram e das chamas que formavam o letreiro de sua capa restarão apenas as cinzas no imaginário da cidade.

(*A denominação “Brasinha” fazia referência a um ícone pop dos anos 60 e 70, personagem carismático de mesmo nome de uma revista em quadrinhos norte-americana, cujas características atribuíam-no um par de chifrinhos, rabo de flecha, pele avermelhada e um tridente.)

Continua após a publicidade...

Por Farley Rocha.

Sobre Farley Rocha

Farley Rocha é professor, fã do Radiohead e do Seu Madruga. Já plantou uma árvore, escreveu um livro e edita o blog http://palavraleste.blogspot.com


  • Plano Assistencial Familiar Vida

    Rua João Alves de Barros, 277
    Centro - Espera Feliz - MG

    (32)3746-1431

    Plantões
    (32) 98414-4438 / (32) 98414-4440

Clique aqui e veja mais